terça-feira, 14 de outubro de 2025

Heleninha e a conivência com o alcoolismo, Joanna Moura, FSP

 Eu não estou vendo a novela. Também não cheguei a ver a versão original. Não porque sou desses seres metidos à besta que desdenha de novela e de tantas outras formas de cultura vistas como "menores" simplesmente por caírem no gosto do povo. Simplesmente não vi porque esqueci de renovar a assinatura do Globoplay. Caso contrário, certamente estaria vendo e, com isso, compreendendo plenamente os memes e participando mais ativamente das confabulações sobre quem matou Odete Roitman e o que deve acontecer no desfecho que se aproxima.

Mas essa semana, colocando em dia os episódios do podcast Mamilos do qual sou assídua ouvinte, me dei conta de que, apesar de não acompanhar "Vale Tudo", durante uns bons anos eu vivi um pouco do que é retratado ali.

No episódio, as apresentadoras Cris Bartis e Ju Wallauer abordam o fenômeno Heleninha Roitman e como a personagem, originalmente interpretada por Renata Sorrah e, agora, por Paolla Oliveira, reacendeu lá nos anos 1980 e segue reacendendo hoje o debate sobre alcoolismo. Participam do papo Camila Magalhães Silveira, psiquiatra da Unifesp e especialista em dependência química, e Mateus Gomes, secretário-geral do Grupos Familiares Al-Anon, associação de parentes e amigos de alcoólicos.

Paolla Oliveira é Heleninha Roitman em 'Vale Tudo'
Paolla Oliveira é Heleninha Roitman em 'Vale Tudo' - Reprodução / Globo

Não foi fácil escutar a conversa. Durante anos vivi um relacionamento com alguém que abusava do álcool. Mas foi só depois que este relacionamento acabou é que eu fui capaz de nomear a relação de dependência que aquele parceiro tinha com o álcool.

É que ele não era o cara que tomava uma dose de pinga logo pela manhã. Ele era o cara que matava uma garrafa de vinho toda noite e apagava na cama com a roupa do corpo. Quando a bebida entrava, ele não gritava nem dava show nem ficava violento. Pelo contrário, as pálpebras pesavam e seu corpo pendia de um lado para o outro em câmera lenta até que se deitava em algum canto e só acordava no dia seguinte. Ainda assim, eu não via o que estava diante dos meus olhos.

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Cris Bartis, Ju Wallauer e seus convidados tentam, ao longo da conversa, delinear as maneiras como ainda enxergamos o alcoolismo: ora como fruto da falta de força de vontade daquele que sofre da dependência, ora como doença crônica. Hoje, do alto do discernimento que só a distância entre o presente e aquele passado me confere, vou além: muitas vezes o problema é justamente o não enxergar.

Ele não enxergava. Afinal, o álcool estava naturalmente inserido em tantas situações de sua vida. Não era apenas aceito, era incentivado, era elegante, era sociável. Até que não era, mas a essa hora os colegas de trabalho já haviam ido embora, os que sobravam e presenciavam a cambaleância, o falar arrastado, uma ou outra cena embaraçosa, relevavam, davam risada, achavam excêntrico, rebelde, e faziam piadas no dia seguinte. "Lembra que o fulano achou ele dormindo no chão do banheiro?".

Eu também não enxerguei, ou preferi não enxergar. Talvez por imaturidade, talvez por falta de informação, ou talvez simplesmente por conveniência, fui conivente. A verdade é que sua relação com o álcool não atrapalhou suficientemente a minha vida para que eu me visse obrigada a encarar o problema.

Eventualmente a relação terminou, minada, entre outras coisas, certamente pela minha esvaziada paciência diante de um problema que dificilmente teria solução. Afinal, como tratar o que nem consideramos que existe?

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