Não viajo com malas pesadas. Aprendi a levar comigo apenas o essencial: um bom livro, um caderno que recebe rabiscos como quem recolhe conchas na beira do mar, e a fome — não só de comida, mas de histórias, imagens, sabores e gente. O resto eu despacho para o porão do tempo.
Tenho por profissão o exercício do cargo de Procurador de Justiça, o que muito me orgulha. Mas, depois da justiça, também procuro beleza. Às vezes a encontro numa sessão tardia de cinema, quando o salão está quase vazio e a luz da tela recorta o silêncio com cenas que me lembram que a vida é, no fundo, uma montagem paciente. Outras vezes, a beleza me surpreende num prato que desconheço, servido numa viela de uma cidade onde nunca estive; ou na conversa que começa com uma observação sobre o vinho e termina com confissões sobre perdas, filhos, amores que não deram certo — e os que, por teimosia, deram.
Carrego minha biblioteca como quem leva um passaporte. Ela não precisa de estantes; cabe em aeroportos, cafés, salas de espera, quartos de hotel com vista para o imprevisto. Não coleciono apenas passagens aéreas, coleciono passagens de livros: trechos que me fazem parar, respirar fundo e admitir, num sorriso discreto: “aqui estou eu, visto por outro.” Quando Joaquim Maria Machado de Assis, por exemplo, me sussurra ironias de bolso, eu rio sozinho; quando um poeta me explica a noite com meia dúzia de palavras, releio para ver se a lâmina ainda corta.
Viajo para encontrar. É claro que mudar de paisagem ajuda, mas o que me move é a curiosidade: o pão de fermentação lenta de um padeiro orgulhoso do bairro; a explicação de um taxista sobre as ruas que não existiam no mapa da infância dele; a maneira como uma cozinheira gira a frigideira como quem está escrevendo uma carta que só o fogo entende. Quanto mais provo, mais respeito os mundos que não conheço. Quanto mais escuto, mais acredito que a língua de um povo cabe, inteira, num gesto de hospitalidade.
Tenho o hábito de caminhar sem pressa. Gosto de me perder em ruas que não pedi e de me sentar em mesas que não escolhi. Vejo nisso uma ética: doar ao acaso o direito de me mostrar o que eu não veria se tivesse pressa. E quando encontro um restaurante escondido — desses em que a música não compete com a conversa —sinto que ganhei uma amizade. Nenhuma sobremesa me comove tanto quanto o brinde entre desconhecidos que viram conhecidos em meia hora.
No trabalho, faço perguntas que pesam; na vida, aceito respostas que dançam. Descobri que o paladar também tem jurisprudência: a primeira garfada julga, a
segunda revisa, a terceira, se for boa, cria precedente. E há filmes que funcionam como voto vencido: saio discordando deles, mas dias depois me encontro citando sua tese, convencido de que mudaram algo em mim.
Gosto de pessoas interessantes. Não as confundo com as que falam alto. Interessa-me quem lê o mundo antes de comentá-lo; quem cozinha com as mãos e escuta com os olhos; quem aceita a contradição como parte do tempero. Gente com quem eu possa construir memórias e, sobretudo, silêncios compartilhados. Tenho aprendido que a conversa mais profunda, às vezes, é feita de pausas bem colocadas.
Levo um caderno por disciplina. Nele anoto um cheiro de café que me seguiu por três quadras, a frase de um garçom que daria título a um conto, o nome de uma uva que não conhecia, a hora em que um filme me quebrou por dentro, o endereço de uma livraria onde comprei o mesmo livro pela terceira vez — por pura teimosia, ou por saber que certos livros nos escolhem de novo quando mudamos de pele.
Se me perguntam o que procuro, respondo sem rodeios: procuro beleza que faça sentido. Não uma beleza decorativa, mas a que reorganiza o dia por dentro. Às vezes ela aparece na forma de um prato simples, perfeito como um argumento claro. Às vezes vem numa fala de cinema tão precisa que parece sentença. Outras, num aceno tímido de alguém que entende que a vida é frágil e, por isso mesmo, merece ser celebrada.
Não sou um fugitivo; sou um buscador. Viajo com o coração ancorado no instante. Aprendi que o melhor dos roteiros aceita desvios; que a mesa certa pode ser a que sobrou; que uma rua lateral pode nos entregar o capítulo que faltava. E quando encontro um lugar que me acolhe — uma trattoria pequena, um bar antigo, um café com cadeiras desalinhadas —, agradeço como quem reconhece a própria casa numa cidade estrangeira.
Carrego cicatrizes discretas, algumas tatuadas em filmes, outras temperadas em molhos que levam horas, outras ainda sublinhadas em páginas amareladas. Não renuncio a nenhuma: é no conjunto que me reencontro. E sigo, livro na mão, garfo pronto, olhar aberto. Sei que em alguma esquina alguém está prestes a me contar uma história que eu não sabia que precisava ouvir. Sei também que, ao final do dia, terei fome — de outra história, outro prato, outro rosto.
Sou procurador, sim. E, se me permitem o trocadilho, continuo a procurar. Justiça e beleza não raras vezes coincidem — quando um prato respeita seu ingrediente, quando um filme honra seus personagens, quando uma conversa trata o outro como quem merece atenção. Nesses momentos, o mundo parece alinhar talheres invisíveis sobre a mesa do acaso, e eu me sento.
Talvez seja esse o meu segredo: viver como quem está sempre de partida, mas cultivar o dom de chegar. Não ao destino que o aplicativo calcula, mas ao que a vida oferece quando a gente desacelera um pouco. A verdadeira viagem, eu sei, acontece quando os livros nos escolhem de novo, os filmes nos devolvem perguntas melhores, a comida nos ensina paciência e as pessoas interessantes — sempre elas — transformam o cotidiano num lugar onde vale a pena morar.
Enquanto isso, sigo com minha bagagem de mão: um livro, um caderno, a fome boa. E um espaço reservado, sempre, para o próximo encontro.
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