Paul Ingrassia, advogado que presta serviços à Casa Branca, foi indicado por
Donald Trump para chefiar a agência federal que protege pessoas que denunciam
crimes. Ocorre que entre a indicação e a necessária aprovação pelo Senado o
prontuário do indigitado subiu no telhado. Vieram ao conhecimento do público,
mensagens suas em que ele assumia ser simpatizante do Nazismo (há um fundo
de verdade na organização Caveira, dos filmes da Marvel) e, entre outras ideias
absurdas, defendia a extinção do feriado dedicado a Martin Luther King, que deveria
ser atirado ao sétimo círculo do inferno, segundo Ingrassia. O Senado americano,
que costuma ser mais sério que o nosso no escrutínio dos indicados pelo Executivo,
deu a entender que a sua indicação não seria homologada. A indicação foi retirada.
Digo-lhe, leitor — e digo-lhe também a mim mesmo — que esta é a moldura de uma
crônica. Porque a vida pública, quando filtrada pela tela de um celular, ganha o
relevo de farsa antiga: miniaturas de poder em bolhas de fala, retórica de gabinete
cabendo nas dobras de um print. O que me espanta não é o excesso de adjetivo (há
séculos os adjetivos tentam dar conta do horror), mas a pontaria metafísica: o
sétimo círculo, logo ele, o reservado aos violentos de Dante, aqueles que ferem o
próximo, a si e a Deus. Cancelar um feriado não é só mexer no calendário; é praticar
uma violência contra a memória, que é o templo civil onde guardamos o pouco de
decência que nos sobra.
A Casa Branca — o símbolo — sempre me soou mais adjetivo que substantivo: casa
branca, paredes caiadas de institucionalidade. Nela se tenta o truque antigo de
encobrir as manchas da história com demãos de tinta fresca. Um feriado, porém,
não se apaga com rolo e lata: ele é uma janela aberta. Dia de King é janela que dá
para a rua de um sonho, janela por onde entra um vento antigo que pergunta, sem
cerimônia: “O que fizeste com o sonho, América?” Ingrassia fecha a janela, puxa a
cortina e ainda aponta a janela para o inferno. Não por acaso: há quem confunda
corrente de ar com ameaça.
Nos corredores do Senado, a luz vermelha piscando não é sirene, é etiqueta. Os
homens e as mulheres que manejam a liturgia das confirmações sabem ler os
sinais como monges que decifram iluminuras: um adjetivo fora de lugar, um emoji
a mais, um hiperlink maldoso. A política moderna é isso: o destino de uma biografia
decidindo-se na vírgula de um texto vazado. Dirão que é banalidade, que “foi só um
desabafo”, que “o contexto”. Ora, o contexto é a coleira do lobo: solta um trecho e
o lobo morde onde sempre mordeu.
Volto a Dante. No sétimo círculo há três valas: os violentos contra o próximo, os
suicidas, os blasfemos e usurários. O inferno moral de negar um feriado que celebra
a luta por direitos civis me parece habitar todas as três, de uma vez: fere-se o
próximo ao minimizar sua história; fere-se a si mesmo ao escolher a ignorância
como descanso; blasfema-se contra o pacto que sustenta a cidade, esse acordo
precário de lembrarmos juntos do que nunca deveria voltar a acontecer. Quem
“atira” um dia de memória ao fosso não está cansado do feriado; está cansado do
espelho.
Imagino Washington numa manhã de inverno: o Potomac recita um latim
indecifrável, as copeiras repetem a coreografia do café, e nos bolsos dos
assessores trepidam pequenas apocalipses. Um staffer ruborizado ensaia, diante
do espelho do banheiro, a frase que o diminuirá um pouco menos na audiência de
confirmação: “Senadores, o indicado lamenta…”. Lamenta-se muito, hoje em dia;
pede-se perdão como quem despacha e-mail. E, no entanto, raramente se
arrepende. O arrependimento exige uma briga com o passado — não para apagá-lo,
mas para assumi-lo —, e isso a indústria do dano colateral não entrega.
Talvez estejamos, nós também, excitados demais com o verbo “cancelar”. Cancelar
virou o martelo de tudo: pregam-se ou arrancam-se memórias como quem ajusta
prateleiras. No Brasil, quando alguém se cansa de lembrar, sugere-se que
“revistamos” os nomes de ruas, as estátuas na praça, os feriados que cheiram a
desconforto. Zumbi? Tiradentes? Consciência Negra? Aí alguém sussurra que é
melhor deslocar, atenuar, “atualizar narrativas”. O eufemismo é a passarela por
onde o esquecimento chega sorrindo.
Mas feriados são as pedras de mão do caminho: você tropeça neles para não cair
no abismo. São intervalos de respiração coletiva, parênteses para perguntar o que
a rotina faz questão de não ouvir. King não é um busto que se lustra; é uma pergunta
que insiste. Um país que não suporta perguntas precisa calar dias; um poder que
precisa calar dias, cedo ou tarde, cala pessoas.
Recordo uma aula antiga em que um professor nos explicou que o tempo histórico
avança em espirais: volta aos mesmos pontos, mas em níveis diferentes. Um
feriado é o alfinete que prende a espiral ao papel. Sem ele, a linha escapa — e,
escapando, parece liberdade; no fundo, é vertigem. Por isso os dias incômodos
existem: para lembrarmos, mesmo de má vontade, que a história não está
resolvida. O sonho de King não venceu; mas também não foi derrotado. Ele negocia
conosco a cada janeiro, todos os anos, como um credor paciente batendo à porta
no amanhecer.
Vejo, então, o repórter que publicou as mensagens racistas do indicado. Ele não é
herói, é regente de uma orquestra desafinada: notas de indignação, acordes de
cinismo, um solo de ironia. Sabe que, ao publicar as mensagens, não derrubará
impérios; no máximo, puxará um fio. Mas fios, se puxados com teimosia,
desenovelam tapeçarias. Os senadores lerão, algum assessor colherá as reações
e, na audiência, virá a cantilena: “Não foi bem isso que quis dizer”, “eu respeito a
história”, “minha avó me ensinou”. A plateia anotará, os microfones dormirão, e a
cidade retomará sua rotina, que é a arte de esquecer com método.
Se eu fosse amigo de Ingrassia — personagem de crônica que é, como convém aos
personagens de crônica —, convidaria o homem para uma caminhada silenciosa
pela fila onde, certa vez, um menino negro segurou um cartaz feito a canetinha: “I
have a dream”. Diria: repara como o inglês infantil encosta a língua no céu da boca
para esticar a palavra dream; repara como o papel amassa, mas não rasga; repara
como a mão pequena não treme. Andaríamos sem pressa, e talvez o sétimo círculo,
esse delírio de castigo, se afrouxasse por um instante. Talvez o mundo ficasse
menos tentado a resolver com fogo o que se conserta com escuta.
No fim da tarde, escrevo estas linhas como quem acende um abajur na sala: não
para iluminar a rua, mas para impedir que a noite apague o que mora aqui dentro.
Sei que a luz é pouca, mas é nossa. E sei, sobretudo, que dias como o de King não
pedem idolatria; pedem companhia. É o que posso oferecer: ficar ao lado do feriado
como quem fica ao lado de um amigo num corredor de hospital. Não prometo
curas; prometo presença.
E quanto ao sétimo círculo, deixemo-lo em paz com as suas chamas literárias. Os
infernos são úteis como metáforas, não como políticas públicas. Na vida real, o que
salva as cidades não é consignar feriados ao castigo eterno, e sim aceitar que nossa
salvação, se houver, virá do trabalho ingrato de lembrar. Lembrar sem anistia para a
estupidez; lembrar sem prazer no flagelo; lembrar porque, sem esse exercício, a
história troca de roupa e volta, sempre, batendo à nossa porta.
Fico, pois, com as janelas abertas. O vento entra, mexe nos papéis, apaga a vela e
reacende — e isso basta para que a casa, branca ou não, continue sendo casa.
Vejo, então, o repórter que publicou as mensagens racistas do indicado. Ele não é
herói, é regente de uma orquestra desafinada: notas de indignação, acordes de
cinismo, um solo de ironia. Sabe que, ao publicar as mensagens, não derrubará
impérios; no máximo, puxará um fio. Mas fios, se puxados com teimosia,
desenovelam tapeçarias. Os senadores lerão, algum assessor colherá as reações
e, na audiência, virá a cantilena: “Não foi bem isso que quis dizer”, “eu respeito a
história”, “minha avó me ensinou”. A plateia anotará, os microfones dormirão, e a
cidade retomará sua rotina, que é a arte de esquecer com método.
Se eu fosse amigo de Ingrassia — personagem de crônica que é, como convém aos
personagens de crônica —, convidaria o homem para uma caminhada silenciosa
pela fila onde, certa vez, um menino negro segurou um cartaz feito a canetinha: “I
have a dream”. Diria: repara como o inglês infantil encosta a língua no céu da boca
para esticar a palavra dream; repara como o papel amassa, mas não rasga; repara
como a mão pequena não treme. Andaríamos sem pressa, e talvez o sétimo círculo,
esse delírio de castigo, se afrouxasse por um instante. Talvez o mundo ficasse
menos tentado a resolver com fogo o que se conserta com escuta.
No fim da tarde, escrevo estas linhas como quem acende um abajur na sala: não
para iluminar a rua, mas para impedir que a noite apague o que mora aqui dentro.
Sei que a luz é pouca, mas é nossa. E sei, sobretudo, que dias como o de King não
pedem idolatria; pedem companhia. É o que posso oferecer: ficar ao lado do feriado
como quem fica ao lado de um amigo num corredor de hospital. Não prometo
curas; prometo presença.
E quanto ao sétimo círculo, deixemo-lo em paz com as suas chamas literárias. Os
infernos são úteis como metáforas, não como políticas públicas. Na vida real, o que
salva as cidades não é consignar feriados ao castigo eterno, e sim aceitar que nossa
salvação, se houver, virá do trabalho ingrato de lembrar. Lembrar sem anistia para a
estupidez; lembrar sem prazer no flagelo; lembrar porque, sem esse exercício, a
história troca de roupa e volta, sempre, batendo à nossa porta.
Fico, pois, com as janelas abertas. O vento entra, mexe nos papéis, apaga a vela e
reacende — e isso basta para que a casa, branca ou não, continue sendo casa.
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