sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Novo darwinismo social, Oscar Vilhena Vieira, FSP

 As primeiras formas de regulação do trabalho surgiram na Inglaterra, ainda no período medieval. O Estatuto dos Artífices, de 1563, fruto de um acordo judicial, impôs ao Estado "incentivar a lavoura e garantir aos empregados salários proporcionalmente convenientes, tanto em tempo de escassez como de fartura".

Essa expressão da "economia moral" do mundo feudal, nas palavras do historiador E. P. Thompson, ruiu em face do vertiginoso processo de urbanização e industrialização, na passagem do século 17 para o 19. A mão de obra, onde não havia escravidão, passou a ser objeto das leis de mercado. Sob o manto da autonomia individual, cada um poderia, teoricamente, negociar o valor do seu trabalho.

Entregador usa ciclovia na avenida Paulista - Eduardo Knapp - 3.dez.22/Folhapress

A primazia da autonomia da vontade foi coroada no caso Lochner v Nova York (1905), em que a Suprema Corte norte-americana declarou inconstitucional legislação que estabelecia o máximo de dez horas para a jornada de trabalho, sob o pretexto de que a Constituição não permitia ao Estado interferir na liberdade de contratação entre trabalhadores e empregadores.

As múltiplas crises, guerras e revoluções decorrentes do "darwinismo social" da Era Lochner foram determinantes para o surgimento dos direitos dos trabalhadores e do próprio estado de bem-estar. No Brasil, esse contramovimento, no dizer de Karl Polany, começou com a CLT e só se completou com a Constituição de 1988, que reafirmou os direitos dos trabalhadores e universalizou direitos sociais à Previdência e à assistência, além dos direitos à saúde e à educação.

Esse edifício civilizatório, ainda bastante incompleto, encontra-se agora sob a ameaça de um novo darwinismo social. Sob o manto da autonomia individual, da livre iniciativa e do empreendedorismo, diversos ministros do Supremo Tribunal Federal parecem dispostos a tornar facultativo o regime dos direitos do trabalhador.

Como ficou demonstrado em audiência pública promovida pelo STF sobre a "pejotização" e nas argumentações orais referentes ao processo de "uberização" do trabalho, duas são as consequências diretas desses movimentos. A primeira, evidentemente, é afastar a incidência de direitos humanos básicos das relações de trabalho. Se o contrato é com uma pessoa jurídica, ainda que encobrindo uma verdadeira relação de trabalho, não há como se falar em discriminação racial ou de gênero, jornada extenuante, ambiente insalubre, férias, licença maternidade, sindicalização ou direito de greve.

De outro lado, há substantiva perda de arrecadação. De 2022 a 2025, dos 5,5 milhões de empregados CLT desligados, 4,4 milhões se tornaram MEI. Isso significou uma perda de R$ 70 bilhões para a Previdência Social; R$ 27 bilhões para o FGTS; e R$ 8 bilhões para o Sistema S (MTE, 2025). Isso sem falar nas perdas de imposto de renda, sobretudo em relação aos contribuintes mais ricos. Se metade dos 35 milhões de empregados CLT brasileiros migrar para MEI ou Simples, as perdas estimadas serão de R$ 384 bilhões por ano (Marconi, Brancher, FGV, 2023), inviabilizando a Previdência e as demais políticas sociais promovidas pela Constituição.

Evidente que as regras trabalhistas precisam de constante atualização. Só não podemos aceitar que a "economia moral" do futuro seja mais perversa que a medieval.

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