Três fatos nos deixam atônitos. Um: esta semana o ouro ultrapassou, pela primeira vez, a barreira de 4 mil dólares por onça, o que representa um novo recorde absoluto, resultado da incerteza geopolítica e econômica. O preço subiu mais de 50% desde 1º de janeiro.
Dois: Portugal está entre os países com maiores reservas de ouro per capita do mundo (383 toneladas), avaliadas em 40 bilhões de euros, o valor mais alto já registrado pelo Banco de Portugal. Três: Entre 1720 e 1807, Portugal extraiu do Brasil 557 toneladas de ouro, o equivalente a 58 bilhões de euros em valores atuais. Foi uma das maiores transferências forçadas de riqueza da história moderna.
À primeira leitura, os três fatos parecem formar uma cadeia causal: o ouro levado do Brasil continua alimentando a economia portuguesa. Mas é uma inferência falaciosa. O ouro guardado a sete chaves pelo Banco de Portugal –em Londres e em uma instalação de alta segurança na vila do Carregado, a 40 quilômetros de Lisboa– tem origem nazista. É um dos mais "sombrios episódios da história portuguesa moderna", afirmou em 2011 o historiador Neill Lochery, autor de "Lisboa: A Guerra nas Sombras da Cidade da Luz, 1939-1945."
Durante a Segunda Guerra Mundial, Portugal manteve uma posição oficialmente neutra, mas tornou-se um dos principais intermediários financeiros da Europa. Entre 1939 e 1945, o país vendeu grandes quantidades de volfrâmio —minério estratégico para a indústria bélica— à Alemanha nazista. Além dos tradicionais vinho, azeite e conservas. Em contrapartida, recebeu pagamentos em ouro. Parte significativa desse metal foi pilhado aos bancos centrais dos países ocupados pelos nazistas, como a Bélgica, Países Baixos e Tchecoslováquia.
Escreveu a historiadora portuguesa Irene Pimentel no seu livro "Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial": "De acordo com documentos descobertos pelo World Jewish Congress, 127 toneladas de ouro "alemão" passaram pelo Banco Nacional Suíço a caminho de Portugal, que assim conseguiu aumentar as suas reservas de ouro em quase 600%."
A quantidade exata de ouro oriundo da Alemanha é incerta, o que reforça a sua origem controversa. Outras fontes apontam que foram 42, 124, ou 228 toneladas. O único consenso diz respeito ao volume oficial das reservas de ouro portuguesas: antes da guerra, 63 toneladas; após o conflito, 357 toneladas. A acumulação tornou-se o pilar econômico do Estado Novo, permitindo a Salazar manter uma imagem de solvência num país pobre.
Um documentário da RTP, a televisão pública portuguesa, exibido em 1997 e baseado numa investigação de historiadores nacionais, descreve com clareza o esquema.
Em 1939, Hitler foi informado pelo Banco Central da Alemanha de que o país já não dispunha de reservas de ouro ou divisas. Montou-se então uma operação de grande escala para que o regime nazista se apropriasse do ouro pertencente aos países ocupados. Uma vez em mãos alemãs, bancos suíços encarregavam-se de lavá-lo, integrando-o no circuito financeiro internacional. Parte significativa desse ouro chegou a Portugal, com a cumplicidade do governo de Salazar. Espiões britânicos e norte-americanos em Lisboa detectaram o esquema e alertaram as autoridades de que as transações teriam de cessar. Datas, nomes, documentos e valores constam do documentário, disponível nos arquivos digitais da RTP.
Com o fim da Segunda Guerra, a maioria dos países foi obrigada a devolver quase todos os ganhos obtidos nas trocas comerciais com a Alemanha. Portugal restituiu apenas 4 toneladas (identificadas como tendo origem nos Países Baixos), possivelmente porque os EUA decidiram fechar os olhos enquanto negociavam a utilização de uma base militar no arquipélago dos Açores, ainda hoje operacional.
Nos anos 1990, escalou a pressão internacional sobre o Banco de Portugal.
Historiadores e economistas judeus e o Congresso Mundial Judaico começaram a questionar a origem de parte das reservas de ouro portuguesas. Em 1998, foi então criada uma comissão para investigar as transações de ouro efetuadas entre as autoridades portuguesas e alemãs no período de 1936 a 1945, presidida pelo ex-presidente da República Mário Soares. O relatório final concluiu que "a investigação efetuada não permitiu encontrar bases que aconselhem o pagamento de qualquer compensação adicional". Isto porque Portugal recebeu o ouro "de boa fé, como resultado de transações legítimas feitas com o conhecimento e consentimento dos Aliados." Nesse período, quando um porta-voz do Banco foi questionado pela revista americana Newsweek se o ouro era dos judeus, respondeu: "Como poderíamos perguntar? Ouro não tem raça".
É verdade. Mas história certamente tem.
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