quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Reservas de ouro de Portugal não vieram do Brasil, mas dos nazistas, Rodrigo Tavares , FSP

 Três fatos nos deixam atônitos. Um: esta semana o ouro ultrapassou, pela primeira vez, a barreira de 4 mil dólares por onça, o que representa um novo recorde absoluto, resultado da incerteza geopolítica e econômica. O preço subiu mais de 50% desde 1º de janeiro.

Dois: Portugal está entre os países com maiores reservas de ouro per capita do mundo (383 toneladas), avaliadas em 40 bilhões de euros, o valor mais alto já registrado pelo Banco de Portugal. Três: Entre 1720 e 1807, Portugal extraiu do Brasil 557 toneladas de ouro, o equivalente a 58 bilhões de euros em valores atuais. Foi uma das maiores transferências forçadas de riqueza da história moderna.

Seis barras de ouro empilhadas em duas camadas sobre superfície refletiva preta. Cada barra tem a marcação '999.9' indicando pureza e um número de série gravado na superfície.
Barras de ouro - David Gray/AFP

À primeira leitura, os três fatos parecem formar uma cadeia causal: o ouro levado do Brasil continua alimentando a economia portuguesa. Mas é uma inferência falaciosa. O ouro guardado a sete chaves pelo Banco de Portugal –em Londres e em uma instalação de alta segurança na vila do Carregado, a 40 quilômetros de Lisboa– tem origem nazista. É um dos mais "sombrios episódios da história portuguesa moderna", afirmou em 2011 o historiador Neill Lochery, autor de "Lisboa: A Guerra nas Sombras da Cidade da Luz, 1939-1945."

Durante a Segunda Guerra Mundial, Portugal manteve uma posição oficialmente neutra, mas tornou-se um dos principais intermediários financeiros da Europa. Entre 1939 e 1945, o país vendeu grandes quantidades de volfrâmio —minério estratégico para a indústria bélica— à Alemanha nazista. Além dos tradicionais vinho, azeite e conservas. Em contrapartida, recebeu pagamentos em ouro. Parte significativa desse metal foi pilhado aos bancos centrais dos países ocupados pelos nazistas, como a Bélgica, Países Baixos e Tchecoslováquia.

Escreveu a historiadora portuguesa Irene Pimentel no seu livro "Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial": "De acordo com documentos descobertos pelo World Jewish Congress, 127 toneladas de ouro "alemão" passaram pelo Banco Nacional Suíço a caminho de Portugal, que assim conseguiu aumentar as suas reservas de ouro em quase 600%."

A quantidade exata de ouro oriundo da Alemanha é incerta, o que reforça a sua origem controversa. Outras fontes apontam que foram 42124, ou 228 toneladas. O único consenso diz respeito ao volume oficial das reservas de ouro portuguesas: antes da guerra, 63 toneladas; após o conflito, 357 toneladas. A acumulação tornou-se o pilar econômico do Estado Novo, permitindo a Salazar manter uma imagem de solvência num país pobre.

Um documentário da RTP, a televisão pública portuguesa, exibido em 1997 e baseado numa investigação de historiadores nacionais, descreve com clareza o esquema.

Em 1939, Hitler foi informado pelo Banco Central da Alemanha de que o país já não dispunha de reservas de ouro ou divisas. Montou-se então uma operação de grande escala para que o regime nazista se apropriasse do ouro pertencente aos países ocupados. Uma vez em mãos alemãs, bancos suíços encarregavam-se de lavá-lo, integrando-o no circuito financeiro internacional. Parte significativa desse ouro chegou a Portugal, com a cumplicidade do governo de Salazar. Espiões britânicos e norte-americanos em Lisboa detectaram o esquema e alertaram as autoridades de que as transações teriam de cessar. Datas, nomes, documentos e valores constam do documentário, disponível nos arquivos digitais da RTP.

Com o fim da Segunda Guerra, a maioria dos países foi obrigada a devolver quase todos os ganhos obtidos nas trocas comerciais com a Alemanha. Portugal restituiu apenas 4 toneladas (identificadas como tendo origem nos Países Baixos), possivelmente porque os EUA decidiram fechar os olhos enquanto negociavam a utilização de uma base militar no arquipélago dos Açores, ainda hoje operacional.

Nos anos 1990, escalou a pressão internacional sobre o Banco de Portugal.

Historiadores e economistas judeus e o Congresso Mundial Judaico começaram a questionar a origem de parte das reservas de ouro portuguesas. Em 1998, foi então criada uma comissão para investigar as transações de ouro efetuadas entre as autoridades portuguesas e alemãs no período de 1936 a 1945, presidida pelo ex-presidente da República Mário Soares. O relatório final concluiu que "a investigação efetuada não permitiu encontrar bases que aconselhem o pagamento de qualquer compensação adicional". Isto porque Portugal recebeu o ouro "de boa fé, como resultado de transações legítimas feitas com o conhecimento e consentimento dos Aliados." Nesse período, quando um porta-voz do Banco foi questionado pela revista americana Newsweek se o ouro era dos judeus, respondeu: "Como poderíamos perguntar? Ouro não tem raça".

É verdade. Mas história certamente tem.

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