domingo, 26 de outubro de 2025

Getúlio é figura ambivalente, e Era Vargas tem paralelos com dias atuais, diz Lira Neto, FSP

 Matheus Tupina

São Paulo

Getúlio Vargas, mais longevo presidente da República brasileira, é um ser ambíguo em suas posições e extremamente pragmático no cálculo político, resume o jornalista e escritor Lira Neto, autor da biografia "Getúlio".

Ditador e precursor dos direitos trabalhistas, modernizador e centralizador, aliado dos Estados Unidos e dos países do Eixo na Segunda Guerra Mundial. Esses são alguns dos aspectos ressaltados pelo autor ao tratar da trajetória de um dos principais políticos da história do país.

Na obra de três volumes, ele argumenta que o ex-mandatário não pode ser reduzido à direita ou à esquerda. "Não era esquerdista nem direitista. Era getulista", diz.

Lira Neto vê semelhanças entre o Estado Novo, a ditadura militar de 1964 a 1985 e a trama golpista de 2022, citando o comportamento dos militares de se considerarem tutores da disputa política em tempos de extrema polarização política e social.

Homem de meia-idade com barba branca e óculos escuros sorri para a câmera. Ele veste camisa preta e está em uma calçada ao lado de um muro coberto por vegetação.
O jornalista e escritor Lira Neto, em Fortaleza; ele é o autor da biografia "Getúlio", dividida em três volumes - Renato Parada/Divulgação

Vê paralelos também entre Getúlio e Lula (PT) para além dos longos períodos à frente do Executivo federal. "Ambos possuem semelhanças pela capacidade de mobilizar grandes massas. Na minha opinião, os principais nomes da história política republicana brasileira são Getúlio Vargas e Lula."

80 anos depois do fim do Estado Novo e da Era Vargas, como podemos analisar a relação entre Getúlio 'pai dos pobres' e Getúlio ditador?
A memória em torno de Getúlio é um território em disputa. Muitos veem nele o líder de extrema sensibilidade social, artífice da legislação trabalhista, que modernizou o Estado, foi indutor da industrialização e promotor do desenvolvimento econômico.

Outros veem o ditador autoritário, que reprimiu a oposição, prendeu adversários, compactuou com a tortura, censurou a imprensa e se manteve no poder às custas de uma poderosa máquina de propaganda pessoal, com o Departamento de Imprensa e Propaganda.

Buscar compreendê-lo dessa forma dicotômica, binária, é cair no erro fácil de pintá-lo como anjo ou demônio. Getúlio foi uma coisa e outra. Como tal, até hoje desperta paixões extremadas, amores e ódios, em idêntica proporção. Sua figura histórica é fascinante exatamente por isso.

Fim da Era Vargas, 80

  • Série de reportagens

    A Folha publica série de reportagens que retrata a renúncia de Getúlio Vargas à Presidência da República em outubro de 1945, há 80 anos, após oito anos de governo autoritário no Estado Novo. Os textos buscam mostrar como o regime que Getúlio promoveu vai além da visão tradicional de expansão dos direitos trabalhistas e modernização do Estado, destrinchando as violações de direitos, a articulação pela derrubada do mandatário e as consequências do período até os dias de hoje

Para o sr., Getúlio é de esquerda ou de direita? Se ele não puder ser visto em um desses espectros, ele é algo particular ou próprio?
Tentar situar Getúlio em qualquer campo do espectro político seria uma simplificação maniqueísta. Getúlio estava para além das ideologias, era contraditório e pragmático, capaz de alternar medidas que ora pareciam identificá-lo com um lado, ora o aproximavam do outro. Não era esquerdista nem direitista. Era getulista.

Até diziam ser perito na "arte de tirar as meias sem descalçar os sapatos". Tanto é que, apesar de dar um golpe com ares fascistas, chegou ao período constitucional visto pelos militares como um comunista.

O sr. vê paralelos entre o Estado Novo, a ditadura militar e a tentativa de golpe sob Bolsonaro?
É sempre perigoso comparar realidades históricas distintas usando a mesma régua, ignorando particularidades e o contexto de cada época específica, sob o risco de cairmos no anacronismo. Descontada a ressalva, há nos três períodos a interferência das Forças Armadas na vida política nacional.

Os militares, antes menos profissionalizados, passaram a se arvorar como árbitros supremos da nação desde a Guerra do Paraguai, acusando os civis de incompetentes e definindo a política como algo necessariamente sujo e corrupto. Com base nisso, em diversos momentos da história republicana, impuseram ou buscaram impor o uso da força como mecanismo de salvação da pátria.

Getúlio teve uma relação de tensão, ora se beneficiando, ora disputando com os militares. De qualquer forma, o então presidente fortaleceu as Forças Armadas, que depois o pressionaram para sua saída em 1945. Não foi um feitiço que se voltou ao feiticeiro?
A relação de Getúlio com os militares sempre foi ambígua. Ele chegou ao poder em 1930 por meio de um movimento que conjugou a força militar e o apoio civil das oligarquias dissidentes da Primeira República. De início, no Governo Provisório, até 1937, tentou administrar essa dicotomia. No Estado Novo, contou com ampla adesão das Forças Armadas, equipando os quartéis e garantindo a manutenção de um governo centralizador.

Mas, ao final da Segunda Guerra, os mesmos militares que o haviam apoiado foram os responsáveis por sua queda, muito também pela mudança de paradigma no mundo com a derrota do Eixo, que o Brasil ajudou ao enviar tropas, além da pressão democrática sobre o regime. Quando [Getúlio] retornou ao poder, em 1951, o Exército estava dividido entre a ala nacionalista e a ala dita democrática. No empenho para se equilibrar nesse jogo de forças, acabou perdendo de vez o apoio da caserna.

Vargas também teve uma política externa dúbia, especialmente em relação à Segunda Guerra Mundial, mantendo o Eixo na rota de negociações até certo período, e fazendo o mesmo com os Estados Unidos. O golpe em 1937 tinha inspiração fascista. Como definir esse posicionamento?
Em 1930, quando candidato à Presidência, questionado por um jornalista sobre qual seria sua inspiração política, Getúlio disse ser "a renovação criadora do fascismo de Mussolini". No contexto da crise do capitalismo e das democracias liberais, em decorrência da Grande Depressão, o antídoto imediato parecia estar nos regimes de força e nos governos autocráticos. A própria formação positivista de Getúlio, no Rio Grande do Sul, apontava para soluções ditatoriais, para uma visão de governo mais restrita.

Além disso, à época da deflagração da guerra, a Alemanha nazista era a principal parceira comercial do Brasil. Getúlio tentou se equilibrar numa política de neutralidade possível, obtendo benesses dos dois lados em conflito, até que as circunstâncias do bloqueio britânico do Atlântico exigiram a busca de novas parcerias. Foi quando teve a habilidade política de negociar o apoio aos Aliados, em troca da viabilização da indústria siderúrgica nacional, financiada em parte pelos EUA.

Sobre o Estado Novo e suas exceções, acadêmicos citam a falta de documentos ou fontes para destrinchar e questionar o período, que teve ampla perseguição e tortura. O sr. acha que essa análise faz sentido?
Não acredito na escassez de documentos para analisar o período. As fontes são abundantes. Os arquivos estão recheados deles. Há excelentes trabalhos sobre o Estado Novo, sob os mais variados aspectos, como os de Ângela Castro Gomes, Antônio Pedro Tota, Maria Celina D’Araújo, Marly Vianna e tantos outros. O problema é que a segunda ditadura, pós-1964, até pela proximidade histórica, sempre despertou mais interesse por parte dos pesquisadores, sejam eles jornalistas ou acadêmicos.

Getúlio foi abraçado com o legado trabalhista, a CLT, a Justiça do Trabalho e a modernização do Estado. O quanto deste legado sobrou ainda hoje, diante da precarização do trabalho e da disputa pelo tamanho do Estado?
A legislação trabalhista, iniciada ainda em 1931 e que culminou na CLT em 1943 modernizou a relação entre capital e trabalho no país que, em perspectiva histórica, havia acabado de sair do regime escravocrata. Embora com os sindicatos sob a tutela do Estado, a CLT foi essencial para a conquista de direitos e para organização da classe trabalhadora.

De lá para cá, é claro, o mundo do trabalho mudou, devido às novas tecnologias e às novas dinâmicas sociais. Há muito o que ser discutido nessa área. Mas querer fazer terra arrasada dos direitos dos trabalhadores é uma perversão. Satanizar a CLT e vender a precarização e a uberização da economia como panaceia, em nome do suposto empreendedorismo, não passa de cinismo torpe.

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