Uma boa síntese do humor francês, após o roubo de joias do Louvre, vem do jornal satírico Charlie Hebdo. Numa charge inspirada, dois ladrões com toucas ninja carregam, à luz do dia, a colossal pirâmide de vidro que serve de entrada para o museu. Daí a manchete do jornal interroga: "Até onde vai a humilhação?".
Violar o Louvre e sair de lá com preciosidades da realeza na mochila, como no último domingo (19), além de chocar a opinião pública, traz à memória o incêndio na Catedral de Notre Dame de Paris, seis anos atrás. É certo que um evento durou sete minutos e o outro, 15 horas de consumação pelo fogo. Porém, em ambos, cai por terra a ilusão de que ainda há lugares públicos inexpugnáveis e indestrutíveis.
Ao tratar de uma certa humilhação, o Charlie Hebdo vai além da ousadia de um punhado de ladrões contra um aparato de segurança. A verdade é que o Louvre devassado coincidiu, na mesma semana, com outro rombo na imagem da "République": o ex-presidente Nicolas Sarkozy trocou a sua casa num bairro chique de Paris por uma cela em La Santé.
Construída no século 19, a lendária prisão parisiense passou a ter entre os seus detentos o primeiro chefe de Estado francês, condenado por financiamento ilegal de campanha. Goste-se ou não de Sarkozy, é acachapante.
São numerosos os fatores que poderiam justificar essa espécie de mal-estar nacional. Institutos de pesquisa captam o fenômeno ao demonstrar a baixa confiança do eleitorado nos partidos políticos; estes, por sua vez, são criticados pela falta de conexão com a realidade dos cidadãos. À falta de um programa econômico consistente, debates identitários e culturais são fermentados pela ultradireita de Marine Le Pen e seu partido, a Reunião Nacional. Cabe o imbroglio imigratório dentro deles.
Na outra ponta, vê-se a ultraesquerda liderada por Jean-Louis Mélenchon e o partido da França Insubmissa, mais vocacionada a radicalizar do que a compor. Entre os dois polos, o que se tem é a crise dos partidos tradicionais de direita, uma esquerda de baixo impacto e um centro que se desagrega.
Ou seja, hoje o semi-presidencialismo francês não é capaz de criar um equilíbrio de forças que garanta a governabilidade do país. Sébastien Lecornu, atual primeiro-ministro, é a quinta tentativa, em dois anos, do presidente Emmanuel Macron para resolver o impasse.
Curiosamente, cresce a nostalgia em torno da maior figura política do país no século 20. Tornou-se corriqueiro ouvir de franceses que "se fosse no tempo de De Gaulle, isso não aconteceria". A queixa tem sido repetida até por políticos apartados ideologicamente, evocando o comandante que ajudou a liberar a França dos nazistas, entregou uma nova Constituição ao país, fundou a Quinta República e, no plano pessoal, levou uma vida exemplarmente austera.
Como destaca o Le Monde Diplomatique, Lecornu se define um gaullista social; Le Pen ataca Macron ao dizer que ele jamais terá a grandeza de renunciar, como fez De Gaulle em 1969; e Mélenchon aplaude o estadista que deu vida a um populismo crítico das elites e defensor da soberania.
O fato é que o velho general se torna, cada vez mais, onipresente. Não à toa circula a ideia de que tudo seria resolvido por ele. Inclusive um vexaminoso roubo no museu mais visitado do mundo, no país que não pode vacilar em defender a sua história.


Nenhum comentário:
Postar um comentário