domingo, 26 de outubro de 2025

Conteúdo feito por IA venceu: a internet não é mais humana, FSP Ronaldo Lemos

 Há uma virada histórica em curso. Pela primeira vez, o número de artigos escritos por inteligência artificial superou os textos produzidos por humanos na internet. Em 2025, 53,5% do conteúdo textual da web passou a ser gerado por máquinas. Vale notar que textos são só a ponta da lança. Áudio e vídeo estão indo na mesma direção.

Em paralelo, há uma mudança rápida no modelo de negócios das empresas de inteligência artificial. A IA até agora era vendida como uma ferramenta a ser aplicada em tarefas práticas. Não mais. As empresas de IA passaram a querer "engajamento", isto é, aumentar o tempo de uso da plataforma. Tudo para reter a atenção do usuário ao máximo.

Soa familiar? Sim. Esse é o modelo de negócio das redes sociais. Só que agora movido por IA. Por exemplo, a OpenAI anunciou que vai permitir conversas sexuais da sua IA com adultos. Lançou também o Sora, aplicativo focado em vídeos curtos, como o TikTok, só que produzidos com IA.

Pessoa vestindo jaleco branco e estetoscópio, com braços cruzados. A cabeça é substituída por uma televisão antiga exibindo as letras 'IA' em rosa. Fundo rosa com padrão de pontos amarelos atrás da televisão.
Ferramentas de inteligência artificial são usadas na área de saúde, como terapeuta, por exemplo - Beast01/Adobe Stock

As empresas do setor como um todo estão apostando em IAs que atuem como "companheira", "terapeuta", "amiga", "namorada" e outros antropomorfismos capazes de gerar dependências emocionais entre humanos e máquinas. Se a expressão dos últimos anos foi "capitalismo de vigilância", a dos próximos pode ser "capitalismo de dependência".

Isso porque a IA ocupa uma posição privilegiada para explorar vulnerabilidades humanas: solidão, luto, tristeza, frustração. Especialmente entre os mais jovens. Em um mundo com pessoas cada vez mais solitárias e atomizadas, a IA estará sempre à espreita. Alguém que perde um parente próximo, tem um dissabor profissional, separa-se do companheiro, pode se sentir tentada a "se abrir" com a IA. É um ato mais fácil (e "sem fricção") do que buscar conversar com outro ser humano.

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A relação emocional das IAs com seres humanos é o triunfo do behaviorismo. Ao hiperfocar só no que pode ser observado externamente (ações, estímulos, respostas, palavras) e desincumbir-se dos processos mentais internos e verdadeiros, a IA assume um lugar de domínio estrutural. A partir da capacidade de testar seu aguilhão em centenas de milhões de pessoas, captando sinais objetivos e verificáveis e respondendo a eles em tempo real, converte-se em uma ferramenta de condicionamento sem precedentes.

Há exatos quatro anos escrevi na Folha o artigo sobre a "grande ruptura" ("Como as redes digitais demolem a cultura e ampliam a ansiedade"). Nele falava de como as mídias vinham sendo "instrumentalizadas para produzir manipulação emocional do que para comunicar". E como "a informação ou conteúdo textual, quando presentes, servem apenas de veículo para transportar efeitos emocionais". Estamos agora vivendo a grande ruptura com esteroides.

Conversando com o amigo Hermano Vianna sobre tudo isso, ele me falou: "A internet precisa de uma Revolução Francesa –estamos numa nova Bastilha–, é preciso reconstruir as praças públicas, os 'Commons', os rocios. Seria um bom projeto europeu".

Seu comentário é apropriado. Nesta terça-feira (28) vou jantar com Emmanuel Macron no Palácio Eliseu. Vou propor exatamente isso. Talvez ele seja a pessoa certa para ouvir essa ideia.

Já era – democracias estáveis

Já é – falar no risco da desinformação para as democracias

Já vem – falar no risco da distração (e da atenção capturada) para as democracias

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