terça-feira, 21 de outubro de 2025

Promotores e servidores de Ministérios Públicos entram em conflito por causa de penduricalhos, fsp

 Todos somos ateus até termos uma doença terminal, alguém dizia. Não sei se é verdade. Conheço vários ateus que, no momento da ceifeira [a morte], permaneceram na descrença. "Agora não é hora de fazer novos inimigos", terá dito Voltaire, no leito derradeiro, quando lhe perguntaram se renunciava a Satanás.

Prefiro pensar que todos somos liberais até termos um filho que nos diz ser torcedor de um time adversário. Aí, sim, nosso universo treme.

Aconteceu comigo. Sou adepto do Futebol Clube do Porto porque recebi a incumbência de mãos paternas: meu pai, meu avô, meu bisavô —uma longa linhagem de dragões azuis. Limitei-me a aceitar a herança e a cultivá-la para a geração seguinte.

Dragão símbolo do Futebol Clube do Porto se degladiando com leão do Sporting Clube de Portugal
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 21 de outubro de 2025 - - Angelo Abu/Folhapress

Meu filho a quebrou. É do Sporting Clube de Portugal. O efeito Cristiano Ronaldo, que nasceu para a imortalidade no Sporting, ajudou a essa traição —e ele, com dez anos, se declarou um leãozinho verde.

É nesses tormentos que StálinHitler e Mao Tsé Tung surgem a nossos olhos como modelos a seguir. A primeira tentação seria trancá-lo no porão, a pão e água —e com o hino do Porto tocando 24 horas por dia. Mas onde estariam meus princípios liberais?

Fingi desinteresse.

"Sério, isso?"

"Sério", respondeu o infame.

"Tudo bem, filho, você que sabe." E soltei um riso escarninho no final. Por que ria eu, quis ele saber.

"Porque a escolha dá vontade de rir", respondi, depositando todas as fichas no efeito satírico.

Não teve efeito. Pelo contrário: a paixão pelo time se fortificou como uma questão de honra. La Bruyère tinha razão: a troça é de todas as injúrias a que menos se perdoa.

Era hora de eu largar o assunto, relaxar, agradecer aos céus por ele não ser do Benfica.

Evidentemente, não larguei o assunto. Inspirado nos filmes da máfia, resolvi fazer uma proposta que ele não poderia recusar: aumentar a mesada se aceitasse o Porto no seu coração.

Recusou.

Aumentar a mesada e as horas em que podia jogar videogame.

Recusou.

Aumentar a mesada, as horas em que podia jogar videogame —e talvez comprar um celular só para ele.

Recusou.

Nesses momentos de confrontação, eu parecia aqueles japoneses dos romances de Shusako Endo (e do filme "Silêncio", de Martin Scorsese, inspirado na obra de Endo), testando a fé de um cristão e o coagindo a pisotear a imagem de Cristo.

"Abjura, bárbaro, abjura!"

O bárbaro não abjurou. Ferido no meu orgulho, recuei estrategicamente e incorri em despesa: camisetas do Porto, bolas do Porto, chuteiras do Porto para oferecer aos amigos dele. Papai Noel tinha chegado mais cedo ao colégio, distribuindo alegria pela pequenada.

Ele, magnânimo, elogiou meu gesto e até se ofereceu para ajudar na distribuição. Aceitei, humilhado. Ele ajudou, trajando o uniforme do Sporting.

Hora de mudar de estratégia. Apelei ao sentimento: imagina o teu pai, velhinho, cambaleante, sem ninguém para o acompanhar ao estádio. "Contratamos uma empregada", respondeu sem hesitar.

Declarei um cessar-fogo, para não admitir a derrota. Ele, sentindo o cheiro da fraqueza, contra-atacou: queria assistir ao jogo Sporting versus Porto no estádio José Alvalade, em Lisboa. E entre a torcida leonina —o supremo vexame.

Minha mulher, pressentindo uma nova crise geopolítica, ofereceu-se como mediadora. Fomos os três —eu, sem sinais exteriores de portismo, para não ser espancado; ele, vestido como Cristiano Ronaldo da cabeça aos pés.

O jogo não foi mal. O Porto marcou. O Porto marcou. Escrevo isso duas vezes porque aconteceu duas vezes. O Sporting marcou, mas essa não se repete. A vitória era minha.

No final do jogo, o meu rapaz inclinou-se para a frente —minha mulher estava entre os dois—, olhou para mim com certo desencanto e estendeu a mão, estoico, em atuação digna de um Oscar (desculpa, Wagner Moura): "Parabéns, foi justo".

Apertei-lhe a mão e respondi: "Obrigado. O teu Sporting também jogou bem, é um belo time".

Tudo mentira, leitor, isso aqui não é Hollywood. Apertei-lhe a mão e respondi: "Ainda vais a tempo, meu filho".

Ele fingiu que não percebeu e eu fingi que ele percebeu, mas a ilusão durou pouco: depois da derrota, tornou-se sócio do Sporting —e, naturalmente, sou eu que pago a mensalidade.

"Haverá netos", dizem-me amigos e familiares. Verdade. Mas será que eles respeitarão o avô quando souberem que eu deserdei o pai?

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