quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Ei, robô, deixe meu travessão em paz! Sérgio Rodrigues ,FSP

 Não há como negar que um toró de confusões se abate sobre o mundo enquanto a IA imita cada vez melhor a linguagem humana. Navegar os novos tempos não vai ser fácil, mas de uma coisa eu tenho certeza —meus travessões ninguém tasca!

Convém explicar. No momento —e considerando-se a carta decisiva da preguiça atávica da espécie—, o futuro da paisagem cultural parece embicado no sentido da hegemonia robótica. Na ponta da produção e na ponta do consumo.

Há quem aplauda os novos tempos, apostando, por exemplo, numa primavera editorial movida por IA ­—e esquecendo de levar em conta que as máquinas não apenas escrevem por nós, mas leem também, o que sugere o oxímoro tragicômico de uma primavera editorial desprovida de leitores.

Alunos entregando trabalhos de IA a professores que mandam a IA corrigi-los são só a ponta do iceberg em que nosso Titanic enfiou o focinho —e já começa a fazer água, ou melhor, lavagem, escória, aquele tipo de lixo viscoso gerado automaticamente que em inglês se chama "slop" e que aqui aguarda um nome acima de contestação. Que tal chorume?

A ilustração mostra um alvo circular em laranja e branco apoiado em um tripé. Várias flechas estão cravadas no chão ao redor, sem acertar o centro, enquanto uma delas aparece em pleno voo, com a trajetória pontilhada indicando sua direção. O fundo azul escuro contrasta com os tons vibrantes do alvo e das flechas, reforçando a ideia de tentativa e erro.
Catarina Pignato

Com ou sem nome, nós reconhecemos o lixo da IA quando o temos diante do nariz —a menos, claro, que já não sejamos capazes de reconhecer coisa alguma. Avalanches de imagens "realistas" num technicolor kitsch, catadupas de textos que são babushkas de clichês dentro de clichês —essas coisas.

Vale ressaltar que o robô poderia nos ajudar a realizar artefatos simbólicos muito melhores do que esses, como tudo indica e algumas experiências demonstram.

Menos que por necessidade intrínseca, parece ser por uma questão de mercado que ele é tão apoteoticamente estúpido. O email também não precisava ter se afogado num oceano de spam, precisava? Pois é.

No carrossel das redes sociais, os algoritmos são programados para induzir nos seres humanos uma larica incontrolável por fezes ultraprocessadas com sabor artificial de tutti-frutti, bacon etc.

Salvo uma reviravolta de roteiro —como o estouro da bolha insustentável que as big techs mantêm inflada a custos financeiros e ambientais cada vez mais altos—, um profundo declínio cognitivo da espécie parece contratado.

A revolução tecnofascista em curso conta com isso, e a verdade é que a onda parece grande demais para o tamanho da nossa prancha. Contudo, por algum lugar é preciso começar a organizar a resistência —e desse modo eu volto ao travessão.

No meu travessão ninguém mexe! Andam dizendo por aí que um modo infalível de detectar um texto de IA é contar o número de travessões. Se este for elevado, pronto —a "autoria" da coisa é de um robô. Quanta bobagem!

O travessão é humano, pessoal. Deixar a IA sequestrá-lo seria cometer o mesmo erro —que só agora vem sendo corrigido— de quando permitimos aos bolsonaristas se apropriarem da bandeira nacional.

Querem desmascarar robôs? Prestem atenção no tom genérico, nos lugares-comuníssimos, nas metáforas mortas, no jogo de cintura de beque alemão, na ausência de humor, nas alucinações —e deixem o travessão em paz.

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