quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Armadilha fiscal brasileira é tão corrosiva quanto câmbio argentino, solange Srour- FSP

 A Argentina chegou ao governo de Javier Milei no fim de 2023, após mais de uma década de desequilíbrio macroeconômico: inflação acima de 200%, forte desvalorização cambial, queda da renda per capita, déficits fiscais persistentes, controles de preços e múltiplas taxas de câmbio. O país enfrentava um colapso clássico, que exigia um ajuste rápido e profundo.

O novo governo iniciou um programa de estabilização ambicioso. A primeira medida foi uma desvalorização de mais de 50% do peso ante o dólar, seguida da adoção de um regime de bandas de flutuação —insuficiente, porém, para que a taxa de câmbio deixasse de estar supervalorizada. Vieram, na sequência, um ajuste fiscal severo —corte de 4,5 pontos do PIB em gastos primários—, eliminação de subsídios, recomposição de impostos sobre exportações e o retorno do superávit primário em 2024, algo inédito em anos.

Homem de terno preto, camisa branca e gravata azul sorri enquanto estende a mão em gesto de cumprimento. Fundo desfocado mostra pessoas com polegares para cima.
O presidente da Argentina, Javier Milei - Luis Robayo - 26.out.25/AFP

Houve também desindexação e liberalização de preços, inclusive tarifas públicas. O impacto inicial foi expressivo: a inflação mensal caiu de 26%, em dezembro de 2023, para abaixo de 3%, no início de 2025, enquanto o setor externo se beneficiou da recuperação agrícola e da queda das importações.

Entretanto, ao tentar acelerar a desinflação sem liberar completamente o câmbio, mantendo o peso artificialmente valorizado, o governo comprometeu parte do sucesso obtido até ali. A moeda cara dificultou a recomposição de reservas e fragilizou o equilíbrio externo, gerando perda de divisas e risco à credibilidade do ajuste.

Apesar das tensões, o governo sobreviveu politicamente. No domingo (26), nas eleições legislativas de outubro de 2025, o partido de Milei, que até então detinha cerca de 15% das cadeiras na Câmara, ampliou substancialmente sua base, fortalecendo a capacidade de articulação e aprovação de reformas e reduzindo a dependência de alianças pontuais com a oposição.

O caso argentino serve de alerta ao Brasil, que vive sua própria armadilha de credibilidade, mas no campo fiscal. Aqui, o câmbio é flutuante, e as reservas são robustas. Contudo, o Orçamento é rígido, e as regras fiscais são frágeis. Nos últimos meses, o quadro se agravou com medidas que elevam gastos fora do Orçamento. Duas decisões chamam a atenção: a proposta aprovada no Senado que coloca "projetos estratégicos" da Defesa fora dos limites de despesa e da meta de primário e, na Câmara, o projeto de lei complementar 163/2025, que exclui despesas temporárias com educação e saúde dessas métricas também. Não são exceções técnicas, mas uma desfiguração do teto fiscal, que perde força quando gastos não imprevisíveis são retirados das regras.

A armadilha fiscal brasileira é menos visível que a cambial argentina, mas igualmente corrosiva. Sem clareza sobre a trajetória da dívida e a confiança na capacidade do governo de cumprir metas críveis, o custo de financiamento seguirá elevado. Juros altos por tempo prolongado comprometem investimento, produtividade e crescimento —podendo levar à dominância fiscal.

A credibilidade não se decreta. Ela precisa ser construída. A sustentabilidade, fiscal ou cambial, depende da coerência entre políticas e da persistência na estabilidade. Para escapar da armadilha, o Brasil precisa de um arcabouço fiscal sólido e vontade política para resistir às tentações de curto prazo.

Mais do que a vitória eleitoral de Milei, o fato mais impressionante foi o populismo ter ficado para trás. Em um país historicamente marcado por promessas fáceis e crises recorrentes, o apoio renovado a um governo que defende disciplina fiscal e reformas liberais revela uma mensagem poderosa: a sociedade argentina começa a enxergar na estabilidade e na responsabilidade econômica um caminho de esperança. Essa virada de chave pode ser, em última instância, o legado mais duradouro das eleições legislativas argentinas de 2025.


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