Encontrei-o pela última vez nas eleições do ano passado. Votamos na mesma zona eleitoral, no bairro do Poço da Panela, em Recife. Doce como sempre, Carlos Sandroni puxou conversa sobre amenidades e pepinos cotidianos da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), onde trabalhamos.
Sua delicadeza e ponderação impedia que tivesse inimizades na pós-graduação em música, da qual foi um dos fundadores. Eu era um dos seus vários colegas. Apesar de bem mais jovem, sempre fui tratado como um igual por ele, que era um dos mais importantes pesquisadores da música brasileira.
Formado em Sociologia em 1981 pela PUC-RJ, Sandroni era violonista e compositor. Nos anos 1980, dividido entre a academia e a carreira artística, acompanhou artistas de renome da época, como sua irmã Clara Sandroni e a cantora Teca Calazans. Canções suas foram cantadas por Olivia Byington, Leny Andrade, Leila Pinheiro e Milton Nascimento. Não deixe de ouvir sua impagável "Pão Doce", regravada por Adriana Calcanhotto em 1990.
Sua dissertação de mestrado, "Mário Contra Macunaíma: Cultura e Política em Mário de Andrade", originalmente defendida em 1987, foi relançada em bonita edição ano passado. Neste livro foram seladas as diretrizes do Sandroni pesquisador de música popular.
Questionando a idéia de que Mário de Andrade seria mero conservador estético, um romântico apegado às raízes rurais brasileiras, Sandroni defendeu que havia em sua obra um projeto modernizador. Diferente dos vanguardismos do século 20, o Mário lido por Sandroni via a tradição rural nacional como um trampolim para a construção da moderna identidade brasileira. Tradição e modernidade não seriam antípodas, mas conciliáveis propulsores da cultura nacional andradiana.
Em 1997 Sandroni defendeu seu doutorado, que se tornou o clássico livro "Feitiço Decente: Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933)". Numa época em que não havia internet, o pesquisador se esmerou em mergulhar nos arquivos, explorando as diferenças entre o que era chamado de samba no início do século e o samba que foi posteriormente abraçado pelo rádio e pela indústria do disco. Descreveu e analisou musicologicamente este padrão fonográfico que batizou de "paradigma do Estácio". Era uma referência ao bairro carioca cujo padrão musical se hegemonizou após décadas de batalhas estéticas entre músicos cariocas, tornando-se sinônimo de samba nacional.
Essas questões e o fato de ter se tornado professor da UFPE em 1998 o levaram a sedimentar a etnomusicologia no Brasil, ramo do estudo que investiga como diferentes comunidades produzem música, a vivenciam e a atribuem significados em seus contextos sociais. Foi fundador da Abet (Associação Brasileira de Etnomusicologia) em 2001, da qual foi o primeiro presidente.
Sandroni tinha olhos atentos à polissemia da cultura. Intelectual de poucos livros (apenas dois) e vários importantes capítulos de livros e artigos de revistas acadêmicas, nunca parou de tocar e cantar. Essa era uma das marcas de Sandroni: o pioneirismo acadêmico e a busca de um meio de campo vital entre academia e a cultura popular, entre a prática e a teoria.
Escrevia artigos de forma clara e direta, sem excessos teóricos frívolos, sempre com um ponto de vista que mantinha uma saudável curiosidade investigativa. Ele buscava entender as relações entre "alta" e "baixa" cultura, que muitas vezes se expressam em processos de patrimonialização das formas artísticas populares, seja através do abraço do Estado, ou através da incorporação via indústria da música. Com vistas a entender in loco o processo que estudava, criou a Associação Respeita Januário que, em parceria com o IPHAN, foi a co-responsável pela patrimonialização do samba de roda baiano e do forró nordestino.
Em seus artigos sobre o tema da patrimonialização, Sandroni atacava dois pontos de vista que limitavam o entendimento do assunto. O primeiro ele chamava de "demasiado ingênuo", aquele que supõe que o patrimônio popular já existe, plenamente criado por grupos locais, antes da chegada de quaisquer agentes de políticas públicas, pesquisadores ou mercado. O segundo ponto de vista, também criticado, ele batizou de "demasiado sagaz". É aquele olhar que via o patrimônio imaterial como algo imposto, uma armadilha da governamentalidade ou de empresários maldosos a comunidades puras e autóctones. Sempre otimista, Sandroni fugia da romantização da cultura popular e não diabolizava aqueles que buscavam dialogar com ela, fosse o Estado, pesquisadores ou o mercado.
Sandroni abordava seus objetos sempre com fartura de dados de pesquisa, na busca por compreender as relações complexas entre agentes oriundos de diferentes instâncias. Em artigo sobre o manguebeat, por exemplo, explicou como universitários e grupos de maracatu se encontraram e gravaram em grandes gravadoras, tendo repercussão nacional. Em obra sobre a patrimonialização do samba de roda baiano, mostrou os dilemas e as diferentes posturas de comunidades de sambistas do Recôncavo baiano diante dos pesquisadores do IPHAN.
Um dos seus mais instigantes artigos chama-se "Adeus a MPB", escrito em 2004 para o livro "Decantando a República", obra organizada pelos intelectuais Heloísa Starling, Berenice Cavalcanti e José Iasenberg. Nele, Sandroni mostrou como o termo "música popular" teve vários sentidos na nossa história. Na época de Mário de Andrade tinha um sentido associado ao folclore. Na época da ditadura militar o termo foi relido pela MPB, associando-se à ideia de povo e da resistência. No novo milênio, quando Sandroni escrevia, o sentido de música popular construído pela MPB parecia dar sinais de esgotamento, diante da ascensão de sertanejos, pagodeiros, funkeiros e cantores de axé desde a década anterior.
Sandroni começou sua carreira influenciado esteticamente pelos ídolos da MPB. Mas sabia separar sua faceta pública de músico e agente patrimonializador do pesquisador acadêmico. Dotado de pensamento original e autônomo, não era romântico, não tinha saudade tola de um passado ou de uma pureza popular que não existe por si. O que está em jogo no seu pensamento crítico é o lugar do povo brasileiro. "Adeus à MPB" é um lamento. Mas é também a gestação de um porvir e "diz respeito não apenas a música, mas também a nossos maltratados ideais republicanos" e a quem queremos ser enquanto nação, enquanto povo. Novos Brasis apontavam na reta. Novas audições seriam necessárias.
Em nossa última conversa, percebi um pequeno aparelho auditivo que ele começara a usar, bastante tecnológico. Sem nenhum sinal de mágoa com o que parecia ser o sinal da idade, conversamos sobre aquela experiência sônica, uma nova forma de viver a música e os sons. Não sabíamos que aquele era talvez um sintoma do tumor fulminante que o matou poucos meses depois, no último dia 28, aos 66 anos.
Adeus, Sandroni. Um grande professor-artista-pesquisador-colega deixa marcas que jamais são esquecidas.


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