Trabalhar nunca foi tão exaustivo. Médico virou divulgador de si mesmo, padeiro filma a fornada, pedreiro mostra a obra em vídeo curto, advogada comenta decisão como se apresentasse telejornal. Autônomo e funcionário com carteira disputam o mesmo palco, a própria vitrine. Hoje não basta fazer, é preciso parecer; não basta entregar, é preciso narrar, e quem não se anuncia vira paisagem.
Depois dos 50, o roteiro inclui outro turno: entregar no emprego enquanto já rascunho o próximo, porque o mercado quer ver "presença", "atualização", "relevância". Não sou eu que digo. Antes de ligar, o recrutador já fuça Google, LinkedIn, Instagram e qualquer outro rastro: currículo virou nota de rodapé do comportamento digital.
Minha lista diária inclui manter as redes em dia, parecer esperta no que escrevo e ainda sustentar uma vida pessoal interessante o bastante para render assunto, com amizades e programas fotogênicos. Vale para todos: a vida virou apresentação de imagens, e quem some do visor perde lugar. A comédia é que tudo tem potencial de conteúdo. Tenho 60 mil fotos guardadas no celular porque, vai que, um dia preciso daquela imagem exata do meu café frio de 2021 para ilustrar uma sacada brilhante —ou qualquer outro troço.
Sugeriram que eu monte um clube do livro (mais um?!). Mal tenho tempo de ler o que preciso para o dia render. Saio para um chope e volto com contatos, a mesa vira triagem e a conversa sempre termina com um "vamos pensar em algo juntos", de modo que as pessoas não se encontram, se avaliam. E eu também faço isso, por medo de desaparecer.
A parte mais desonesta é a exigência de biografia "invejável". Não basta competência; tem que ter narrativa irresistível, rede impecável, casca grossa e brilho perene. A receita está dada por toda parte: clareza de proposta, coerência entre o que você faz e o que você mostra, visibilidade constante, como se atualizar fosse uma obrigação moral. O recado subliminar é simples: sem presença digital decente você some, inclusive porque muita vaga circula no subterrâneo das indicações.
Cansa. Cansa performar a própria existência enquanto tento pagar as contas. Cansa medir cada frase pelo potencial de engajamento. Cansa ficar interessante por atacado: carreira, viagem, amizade, rotina, tudo empacotado em carrossel. Cansa caminhar com a cabeça um passo à frente do presente, sempre pensando "isso rende? isso me posiciona?". No fim do dia, virei minha própria chefe tóxica, aquela que não respeita horário, que cobra um post melhor, que olha minha vida íntima como ativo de marketing.
Fala-se do fim da escala seis por um, o que é bonito no papel. Na prática, quase todo mundo trabalha sete por zero para manter presença e não escorregar pro fim da fila, porque tem sempre alguém para dizer algo e ser ouvido. Nunca fomos tão escravos do tempo, do trabalho e da imagem. Não há virada inspiradora à vista, há a rotina de apertar mais um pouco no sábado, mais um pouco no domingo, mais um pouco no feriado, só para não desaparecer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário