sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Pra que tanta pressa?, Mauro Calliari, FSP

 Tenho visto com algum espanto várias propagandas de aplicativos de entrega prometendo mercadorias e comidas em até dez minutos.

O serviço tem nomes diferentes, mas esse turbo delivery parece ser a nova fronteira de batalha, que promete esquentar com a chegada da Keeta, uma marca com 770 milhões de usuários na China.

Onde há oferta, há demanda. E é intrigante constatar como o hábito de fazer compras sem sair de casa se alastrou com tamanha rapidez e em tamanha escala, principalmente para comida pronta.

Homem agasalhado, de moto vermelha, com capacete branco, faz entregas numa cidade à noite
Alfredinho pastava no serviço de motofrete. - Rowan Freeman/Unsplash

As mesmas pessoas que passam horas nas redes sociais pedem um hambúrguer em casa por falta de tempo de ir até a cozinha fritar sua própria carne. Amigos que se encontram para ver um jogo da Libertadores nem pensam em levar cerveja ou batatinhas. Acionam o Zé Delivery quando der vontade e se incomodam quando a entrega demora.

Claro, o e-commerce é de fato conveniente. Se as livrarias não têm um livro, é ótimo poder encontrá-lo na rede e recebê-lo em alguns dias. O que parece ir além da necessidade não é a conveniência, mas a certeza de que podemos atender a qualquer desejo no menor tempo possível.

Essa mudança drástica de comportamento individual pode estar tendo impactos diretos na vida na cidade.

O primeiro impacto é a deterioração da rua como espaço de permanência e convivência. São milhares de motos e bicicletas circulando em busca da máxima eficiência na entrega de mercadorias.

Muitas vezes, como constata qualquer um que esteja tentando atravessar uma rua, o trajeto mais eficiente dos entregadores passa pela contramão, pelo sinal vermelho, por ignorar pedestres ou pela imprudência, sob os olhares complacentes da fiscalização.

Perguntei às empresas se o turbo delivery poderia incentivar entregadores a acelerarem ainda mais em busca de cumprir prazos menores. Entendi que a logística para atender a um pedido em dez minutos depende mais da tecnologia do que do entregador.

Não se trata mais de escolher uma comida e torcer para ela chegar no tempo mais curto. O sistema agora seleciona, dentro de um círculo de 2 ou 3 quilômetros, tudo o que pode ser separado, embalado e entregue em dez minutos.

IFood explicou que os entregadores muitas vezes nem sabem se se trata de um pedido turbo ou normal, o que em tese não geraria nenhum incentivo adicional para correrem.

Outro impacto é o risco ao comércio local, historicamente essencial para a manutenção da urbanidade. Quantos empregos não estarão sendo perdidos com fechamento de lojinhas de bairro que não tem nenhuma condição de sobreviver diante da velocidade e escala avassaladora dos aplicativos de entrega?

As chamadas dark kitchens amplificam o efeito do não-pertencimento, juntando num só lugar pequenas cozinhas de diferentes marcas. Na frente delas, dezenas de motociclistas que moram a vinte quilômetros esperam para levar a comida até alguém que está a duas quadras dali.

A propósito disso, a Prefeitura vai testar um centro de acolhimento aos motociclistas, na Paulista com Dr. Arnaldo, onde possam ir ao banheiro ou aquecer suas marmitas no micro-ondas.

Talvez seja um exagero tentar relacionar a vitalidade da cidade a uma mudança de hábito individual tão simples quanto, digamos, pedir bacon no delivery enquanto prepara o carbonara em vez de ir até o supermercado. Entretanto, não posso deixar de achar estranho que tenhamos chegado tão rapidamente a não aceitar mais o hiato de tempo entre desejar algo e tê-lo.

Que isso possa causar impactos na cidade ainda é algo a se comprovar, mas temo que a pressa, o medo ou a preguiça possam contribuir para virarmos gradualmente —e inexoravelmente —as costas para a rua.

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