terça-feira, 14 de outubro de 2025

João Pereira Coutinho - Cinema-verdade, FSP

 1. Confesso: sinto inveja dos brasileiros. Quem me dera estar presente no dia da abertura da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo para assistir, em estado puro, ao filme "Sirât", de Oliver Laxe. É um dos melhores filmes do ano —talvez da década— por ser também o mais arriscado e selvagem que me lembro de contemplar.

Estamos no Marrocos, no deserto, esse lugar de místicos e renegados. A multidão dança, em transe, ao som de música eletrônica. Duas figuras inusitadas surgem na paisagem: Luís e seu filho Esteban. Procuram a filha e irmã, desaparecida numa das raves do deserto.

Espalham cópias da foto da moça, mas ninguém viu, ninguém sabe. Um grupo de ravers sugere: talvez ela esteja mais ao sul, perto da fronteira com a Mauritânia, onde haverá outra festa. Os olhos de Luís e do filho se animam ao saber que o grupo se dirige para lá. "Podemos ir com vocês?", pergunta o pai.

O grupo hesita: o deserto é o deserto —perigoso, impiedoso. O carro de Luís é frágil demais para a vastidão. Ele insiste. O filho também. E partem. É o início de um road movie trágico e espiritual que levará os viajantes aos limites do humano.

Disse "trágico" e "espiritual" porque ambos se complementam.

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A sensibilidade contemporânea expulsou a tragédia das nossas vidas. Se tudo depende apenas da nossa vontade, a "tirania da contingência" torna-se um conceito vago —e desnecessariamente cruel. Somos filhos do Iluminismo, mesmo que nos pensemos pós-modernos: a razão pode ser falível, mas isso não significa entregar o jogo ao acaso.

Nossos antepassados discordavam. A tragédia era inerente à condição humana e tinha uma função: lembrar aos presentes como os confortos da civilização são frágeis. E que a verdadeira iluminação acontece quando aprendemos que não controlamos coisa alguma.

Será este o destino do grupo: saber que não controla nada. Uma experiência em que o absurdo, o grotesco e o risível se unem, e os viajantes atravessam o seu próprio "Sirat" —essa ponte "mais fina que um fio de cabelo e mais afiada que uma espada", suspensa sobre o inferno, com acesso ao paraíso.

É essa travessia, entre o desespero e a redenção, que revela o lado salvífico da insignificância.

Se você estiver em São Paulo nesta quinta-feira, nem hesite.

"Annie Hall, personagem-título do filme de Woody Allen, interpretada pela recém-falecida atriz Diane Keaton."
Angelo Abu/Folhapress

2. Morreu Diane Keaton, aos 79 anos. Estranho isso. Eu não sabia que Diane Keaton era mortal. Para mim, nunca foi —e a culpa é de Woody Allen. Quando ele a escolheu para "Annie Hall" [no Brasil, "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa"], sua intenção era que o público pudesse ver Keaton exatamente como Woody a via —e se apaixonasse por ela como ele se apaixonou anos antes.

Missão cumprida, Woody: quando assisti ao filme pela primeira vez —devia ter 14, talvez 15 anos— caí de quatro por Diane Keaton. A beleza era óbvia, mas eu já sabia disso desde "O Poderoso Chefão", quando ela surge como a mulher (e mártir) de Michael Corleone.

O que eu não sabia é que uma beleza assim também podia ser habitada pela inteligência, pelo humor, pelo desvario —e por um guarda-roupa que parecia uma mistura de Ralph Lauren com Peaky Blinders.

Era um adolescente, mas o arquétipo feminino ficou —e voltou em "Manhattan", na espantosa sequência em que a sua personagem, Mary, visita o planetário de Nova York na companhia de Isaac (Woody "himself").

Diria ele mais tarde, recordando esse encontro: "Tive um impulso louco de te jogar na superfície lunar e cometer uma perversão interestelar com você". Quem o pode censurar? Marcel Proust —que não é exatamente um bom guia em matéria heterossexual— dizia que deveríamos deixar as mulheres bonitas para os homens sem imaginação.

Quase, Marcel, quase. A lição é outra: deixemos as mulheres insípidas, afetadas, namoradas de si mesmas (obrigado, Nelson Rodrigues), para os homens sem imaginação. A verdadeira mulher-troféu é singular, espirituosa, opinativa e cúmplice —capaz de encher uma vida de risos, lágrimas e daquele "la-di-da" que define a sofisticação descolada.

Woody Allen, em suas memórias, resumiu tudo na frase mais perfeita e justa sobre ela: se Huckleberry Finn fosse uma bela mulher, seria Diane Keaton. Touché!

Este é o único conselho que deixarei à descendência, assim que os hormônios do rapaz começarem a fazer estragos: encontre a sua Huckleberry Finn —e, se puder, não a perca por nada neste mundo.

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