terça-feira, 26 de agosto de 2025

Sensor portátil detecta canabinoides sintéticos em cigarros eletrônicos e fluidos biológicos, Agência Fapesp

 José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Mesmo sem conter nenhuma substância ilícita, o líquido dos cigarros eletrônicos pode causar sérios danos à saúde. Em muitos casos, a concentração de nicotina nesses produtos é várias vezes superior à encontrada nos cigarros convencionais – o que favorece a rápida instalação da dependência. Além disso, como os cigarros eletrônicos são proibidos no Brasil – proibição que engloba a fabricação, a importação, a comercialização, a distribuição, o armazenamento, o transporte e a propaganda de dispositivos eletrônicos para fumar, conforme resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – os produtos oferecidos aos usuários não passam por nenhum controle de qualidade.

“Alguns desses líquidos chegam a ter 100 vezes mais nicotina do que um cigarro comum, cujo limite máximo legal é de 1 micrograma de nicotina por cigarro. Além disso, já foram encontrados nos líquidos aditivos como o acetato de vitamina E, que causou mortes e lesões pulmonares permanentes em usuários nos Estados Unidos”, afirma Luciano Arantes, pesquisador e membro do comitê gestor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Substâncias Psicoativas (INCT-SP).

O cenário se torna ainda mais preocupante quando se considera o uso clandestino de canabinoides sintéticos nesses dispositivos. Essas substâncias são criadas em laboratório para imitar os efeitos do tetrahidrocanabinol (THC), o principal componente psicoativo encontrado na Cannabis sativa (maconha). Mas os canabinoides sintéticos são muito mais potentes e podem desencadear efeitos neurológicos como convulsões, surtos psicóticos e até mortes por overdose.

“O que estamos vendo é uma corrida química. Grupos clandestinos produzem drogas com estruturas cada vez mais potentes, exigindo doses mínimas para obter o efeito desejado. Como não há qualquer rotulagem ou aviso, o usuário consome sem saber o que está ingerindo”, alerta Arantes.

Para enfrentar o problema, pesquisadores brasileiros, com parceria internacional, desenvolveram um sensor portátil capaz de detectar com precisão canabinoides sintéticos em líquidos de cigarro eletrônico e em fluidos biológicos, como a saliva. O dispositivo foi descrito em artigo publicado na revista Talanta.

“Nós desenvolvemos um método eletroquímico que identifica com alta seletividade e sensibilidade diferentes moléculas de canabinoides sintéticos. A análise pode ser feita em qualquer lugar, com uma pequena amostra, e o sensor responde por meio de um sinal eletroquímico característico”, descreve Larissa Magalhães de Almeida Melo, primeira autora do estudo, juntamente com a aluna Cecília Barroso.

O dispositivo utiliza um eletrodo de diamante dopado com boro, fabricado em colaboração com um grupo da Universidade de Tecnologia de Bratislava, na Eslováquia. “É um sistema simples: o eletrodo é conectado a um potenciostato portátil, que pode ser acoplado a um celular por sua porta USB-C ou mesmo por conexão sem fio via Bluetooth. A resposta é um gráfico de potencial por corrente, com picos específicos que identificam e quantificam as substâncias presentes”, explica Melo.

“Esse sensor apresenta uma grande inovação no campo dos dispositivos portáteis, pois alia a portabilidade dos sensores impressos com a alta estabilidade dos materiais de diamante dopado com boro, podendo ser reutilizados inúmeras vezes”, sublinha Wallans Torres Pio dos Santos, professor da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri, em Minas Gerais, e coordenador do estudo.

Testado com as substâncias AB-Chminaca e MDMB-4en-Pinaca, dois dos canabinoides sintéticos mais comuns e perigosos, o sensor demonstrou capacidade de detectar concentrações muito baixas, da ordem de 0,2 µM, mesmo na presença de altos teores de nicotina e outras interferências. Em química, o µM, chamado de micromolar, é uma unidade de medida da concentração de uma substância em solução. O valor de 1 µM é de um milionésimo de mol por litro.

“O grande diferencial do nosso dispositivo está na seletividade. Mesmo com a complexidade das amostras, conseguimos focar apenas nas substâncias de interesse. É como entrar num ambiente escuro e iluminar só o ponto que queremos observar”, compara Santos.

Além da aplicação como ferramenta de triagem pela polícia científica, o aparato poderá ser usado no campo da saúde pública para o pronto atendimento de usuários em situação de overdose ou acometidos por outras complicações – e também em ações preventivas de redução de danos. Para este último objetivo, o grupo de pesquisadores mantém parceria com o “Projeto BACO - A Toxicologia & as Análises Toxicológicas como fontes de informação para políticas públicas sobre drogas”. “O objetivo desse projeto é avaliar o uso de novas substâncias psicoativas em festas e festivais, por meio da análise de amostras de fluido oral (saliva). Nossa parceria com os pesquisadores do BACO busca estender o objetivo inicial do projeto para permitir não somente a análise da saliva, mas também uma triagem imediata em substâncias que os frequentadores pretendam consumir”, explica Arantes.

“Esses canabinoides sintéticos estão em constante transformação. Novas variantes surgem o tempo todo e muitas delas são extremamente potentes e perigosas. Nosso objetivo é desenvolver tecnologias que possam ser levadas a campo. Queremos que o usuário saiba o que está consumindo e tenha condições de tomar uma decisão informada. Isso pode evitar intoxicações graves e até salvar vidas”, ressalta Melo.

“Nossos levantamentos mostram que 63% dos usuários não sabem o que estão consumindo. Muitos acham que estão usando uma droga conhecida, mas na verdade podem estar utilizando uma substância com potência muito maior. Ao identificar a substância no local, o sensor dá ao usuário a chance de tomar uma decisão consciente sobre o uso. Isso, por si só, já reduz riscos e salva vidas”, aponta Santos.


Gráfico que permite identificar e quantificar a substância-alvo presente no cigarro eletrônico (figura: Larissa Melo/INCT-SP)

A capacidade de adaptação do método é outro ponto forte destacado pelos pesquisadores. “Já desenvolvemos sensores para outras classes de substâncias, como LSD e seus análogos sintéticos, catinonas e feniletilaminas. Estamos trabalhando também na incorporação de reagentes colorimétricos aos sensores, para facilitar a interpretação visual dos resultados”, detalha Arantes.

A FAPESP apoia o projeto por meio de auxílio à pesquisa concedido a José Luiz da Costa, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em toxicologia e parceiro do grupo. Parte das análises foi feita em colaboração com o laboratório dele, utilizando amostras reais de saliva coletadas em ambientes de uso.

“As amostras de saliva utilizadas no estudo foram coletadas no âmbito do Projeto BACO, desenvolvido na Unicamp em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública [MJSP]. Esse projeto, por sua vez, é um desdobramento da pesquisa "A toxicologia das novas substâncias psicoativas (NSP): epidemiologia do consumo através da análise de amostras de cabelo e fluido oral", também apoiada pela FAPESP, na qual realizamos pela primeira vez no Brasil um levantamento epidemiológico sobre NSP em festas e festivais. A partir dos resultados dessa pesquisa, o MJSP decidiu apoiar e ampliar o estudo, permitindo coletas de amostras em número muito maior, de 500 amostras no projeto inicial para 2.500 no atual. Isso nos permitiu novas parcerias, incluindo esta, com o grupo do professor Wallans”, conta Costa.

“O objetivo é levar a ciência para onde ela pode causar impacto direto. Peritos, médicos e profissionais de saúde precisam de ferramentas acessíveis, rápidas e confiáveis para enfrentar os desafios impostos pelas novas drogas. O que propomos é uma solução prática, portátil e escalável”, resume Arantes.

O artigo A novel electrochemical method for detecting synthetic cannabinoids in e-cigarette and biological samples using a lab-made electrode pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0039914025010641.

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