Márcia Meng é a superintendente da Receita Federal em São Paulo e uma das responsáveis pela operação que cercou nesta quinta-feira, 28, um total de 42 alvos em cinco endereços da Avenida Faria Lima. Ao Estadão, ela contou como o crime organizado usou as instituições de pagamento, as chamadas fintechs, para chegar ao coração financeiro do País.
Os investigadores responsáveis pela operação na Faria Lima dizem que a ação mostra uma terceira fase da ação do crime organizado no País. Depois de organizar o tráfico internacional de drogas e de se apossar de contratos com o setor público, agora ele teria se infiltrado em parte do sistema financeiro.
Veja os principais trechos da entrevista:
No que as fintechs se transformaram no País e por quê?
Para você
É bom a gente fazer uma diferenciação. Há fintechs que atuam regularmente no mercado e há essas fintechs que a gente está se referindo. Essas fintechs se transformaram em verdadeiros operadores do crime organizado dentro do sistema financeiro. São elas que permitem a introdução do dinheiro ilícito no sistema. Eles bancarizaram a atividade financeira dessas entidades criminosas.
Como foi essa evolução do crime organizado no Brasil? O que acontecia antes quando alguém desejava blindar seu patrimônio e o que é feito hoje?
Há uma grande sofisticação, maior do que havia no passado, quando essas atividades criminosas eram feitas através de empresas de fachada. Empresas que muitas vezes eram mais fáceis a gente identificar, pois elas eram irregulares. Hoje elas estão dentro da economia formal. Compram empresas que são operacionais, usam fintechs para bancarizar o dinheiro ilícito e usam fundos de investimento para adquirir patrimônio e blindar o real beneficiário deste patrimônio. Antigamente, para você fugir ao controle estatal, você levava o seu dinheiro para um paraíso fiscal. Hoje você não precisa fazer isso; você simplesmente abre, no seu celular, a conta numa fintech, transita o dinheiro irregular para dentro dessa fintech e essa fintech vai atuar transferindo esses valores para fundos de investimento. Aí você pode comprar casas, empresas, pode atuar no mercado financeiro e pode fazer render aquele capital que foi adquirido de forma ilícita.
De que forma isso pode prejudicar todo o ambiente de negócios e colocar o próprio País em risco?
Esse é um tipo de situação que coloca todo um setor econômico refém de um grupo criminoso, porque eles dominam desde produtos importados, desde a importação desses produtos, até a venda para o consumidor final. Ou seja, todas as etapas da cadeia produtiva são dominadas pelo crime. Eles passam a adquirir, por meio desses fundos de investimento, empresas em cada segmento, em cada elo dessa cadeia econômica. É muito difícil que qualquer pessoa consiga regularmente concorrer com essas empresas, que são operacionais. Há um problema concorrencial, um problema para a economia, já que, muitas vezes, o produto vendido é de má qualidade, adulterado, o que causa outros problemas, às vezes de saúde. Veja que isso ocorre quando nós queremos mudar a nossa matriz energética para uma matriz mais limpa. Quando temos grupos criminosos atuando em determinados setores econômicos, eles incentivam o uso de uma matriz econômica que não é a mais limpa.
Como lidar com essa opacidade? Existe alguma medida que poderia ser adotada e que poderia, de alguma forma, garantir um pouco mais de fiscalização e controle para lidar com essa situação e tentar reverter, em parte, esse descontrole das instituições de pagamento?
Sim. A Receita, em 2024, fez uma alteração de uma instrução normativa que já era aplicada para todas as instituições financeiras. A única alteração que havia dentro dessa instrução normativa era a obrigação de as fintechs também prestarem informações à Receita Federal sobre as movimentações que ocorrem dentro da fintech. Infelizmente, essa instrução normativa teve que ser revertida após uma onda de fake news. Hoje nós não temos a visibilidade do que acontece dentro de uma fintech da forma como nós temos a visibilidade do que acontece num banco normal. Isso não era uma obrigação nova, uma obrigação que todas as condições financeiras já não entregassem, não se quebrava o sigilo bancário, porque nós já temos essas informações vindas dos bancos – já é reconhecido o direito da administração de ter essas informações. Mas, especificamente, das fintechs, por serem meios de pagamento e não serem instituições financeiras, elas estão fora desse hall de pessoas obrigadas a entregar essa declaração.
A mera entrega dessa declaração permitiria à Receita ter visibilidade sobre quais são as fintechs que atuam regularmente e quais são as que não atuam. Até para o mercado de inovação, para a importância que ele tem no País, ele precisa ter essa regulação para que possa ser feita a diferenciação entre os que funcionam como banco do crime organizado e aquelas que funcionam regularmente, apenas dando oportunidade de bancarização à grande massa de população que nós temos.
O importante é ter inovação com segurança?
Sem dúvida nenhuma. Se a gente não tiver uma regulação que permita esse equilíbrio entre a inovação que trazem as fintechs, com a segurança do sistema financeiro, nós vamos ter a infiltração do crime organizado no nesse sistema, como nós estamos vendo nessa operação.
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