domingo, 10 de agosto de 2025

Juliana, espancada naquele elevador, precisa marcar nossa retina para sempre, FSP

 9.ago.2025 às 22h00

Manoela Miklos

Mestre e doutora em relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP; pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Silvia Chakian

Mestre em direito (PUC-SP), é promotora de Justiça (MP-SP)

Samira Bueno

Diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

cena é insuportável de se ver: dentro do elevador de um prédio residencial em Natal, por intermináveis 35 segundos, Juliana Garcia dos Santos, 35, é brutalmente espancada pelo namorado, que desfere 61 socos contra o seu rosto, desfigurando-a. O agressor tem nome: Igor Eduardo Pereira Cabral, 29. O pior? O caso impressiona não pelo que tem de extraordinário. As imagens impressionam pelo que têm de comum.

De acordo com o recém-lançado Anuário Brasileiro de Segurança Pública, regularmente publicado pelo Fórum de Segurança Pública, o Brasil registrou em 2024 o maior número de feminicídios da história, com 1.492 vítimas. O número de tentativas de feminicídio também bateu recorde e, com um crescimento de 19%, resultou em 3.870 mulheres vítimas. Assim como Juliana, que escapou por pouco de ser morta graças a mobilização do porteiro e de alguns moradores, que rapidamente intervieram.

A imagem mostra duas pessoas em um espaço confinado. Uma delas está sentada no chão, com a cabeça inclinada para trás e aparenta estar ferida, com sangue visível. A outra pessoa está em pé ao lado, com uma expressão de preocupação ou urgência. O ambiente parece ser um banheiro ou uma cabine, com paredes de plástico e alguns objetos no chão, como chinelos. A iluminação é fraca, o que contribui para a atmosfera tensa da cena.
Imagem gravada por câmera de segurança mostra vítima caída após receber mais de 60 socos do namorado agressor dentro do elevador, em Natal - Reprodução

O perfil das vítimas segue o mesmo: 63% são mulheres negras e cerca de 70% têm entre 18 e 44 anos —ou seja, mulheres em idade reprodutiva são as mais vulneráveis. A maioria dos crimes ocorre dentro de casa (64%), e 97% dos agressores são homens. Em 8 a cada 10 casos, o feminicídio é cometido por companheiros ou ex-companheiros da vítima.

E é preciso lembrar: o feminicídio não é um incidente isolado, é a misoginia expressa em sua forma mais brutal e definitiva. Como diz a escritora canadense Margaret Atwood, os homens temem que as mulheres riam deles. As mulheres temem que os homens as matem.

Temos marcos legais que são referência na prevenção e enfrentamento da violência de gênero. A mais célebre das leis que versam sobre violência de gênero no país, a Lei Maria da Penha, completou 19 anos na quinta-feira (7) e merece o prestígio que tem. Mas abundam desafios de implementação que não permitem que o Estado, em boa parte do país, chegue até as brasileiras em risco a tempo e as ajude a romper o ciclo de violência em que estão inseridas.

O alto número de medidas protetivas de urgência concedidas e de medidas descumpridas pelo agressor comprovam essa avaliação. Em 2024, tivemos 6,6% mais medidas concedidas, mas as violações por parte dos agressores cresceram ainda mais —10,8%.

Outros dados ajudam a compor esse cenário alarmante. Com dois acionamentos por minuto, o 190, número de emergência das Polícias Militares, revela um quadro de mais de 1 milhão de atendimentos em decorrência de violência doméstica: o retrato de um país verdadeiramente em guerra contra as brasileiras.

Em suma, o Brasil tem enorme dificuldade em fazer segurança pública da porta para fora, mas a dificuldade é ainda maior quando se trata de fazer política pública da porta para dentro. Vivemos num país onde a misoginia impera, e que reage brutalmente à busca por emancipação das mulheres. Apesar dos avanços legislativos, ainda estamos distantes de romper com as raízes culturais que naturalizam as desigualdades de gênero, o controle e o sentimento de posse masculino.

É por isso que casos como o de Juliana não surpreendem. Juliana é regra, não exceção.

Seu caso confere tangibilidade aos dados. Dá a eles nome, rosto, cor, voz e história. Desperta emoções que os dados, frios, não dão conta de trazer à tona. E, assim, contribui para a construção de uma realidade mais digna para as brasileiras. Afinal, nas palavras da feminista norte-americana Cheris Kramarae, precisamos defender a noção radical de que as mulheres são seres humanos.

Juliana, naquele elevador, precisa marcar nossa retina para sempre e nos lembrar cotidianamente que mulheres são seres humanos. Não é pedir muito, é?


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