sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Assassinato de vilas: Câmara e Prefeitura liberarem venda de rua de SP beira a loucura, Fernando Reinach., OESP

 A destruição de Cerqueira César agora conta com um novo vilão: o assassino de vilas. O primeiro crime está em andamento e foi noticiado pelo Estadão. Caso o vilão seja bem-sucedido, crimes dessa natureza se tornarão rotina. Venha conhecer a vítima e o vilão.

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Bairros como Cerqueira César estão organizados em quarteirões, um quadrado de aproximadamente 100 metros de lado, cercado por quatro ruas. De frente para cada rua estão casas, prédios e estabelecimentos comerciais. Num quarteirão típico, os fundos dessas construções se encontram no centro do quadrado, sobrando, quando muito, espaço para uma dessas piscinas que nunca tomam sol.

Mas muitos quarteirões são maiores, e sobra um espaço amplo no centro. Em cidades como Paris ou Florianópolis esses espaços são ocupados por pátios ou praças internas, que abrigam jardins ou outras áreas de lazer, para onde se abrem as janelas posteriores das construções.

Em São Paulo, algumas dessas áreas foram ocupadas por pequenas vilas. O acesso às vilas ocorre por uma rua muito estreita, geralmente um L sem saída. Essas quase vielas são ladeadas por pequenos sobrados geminados, geralmente com uma sala e cozinha no térreo, dois quartos e um banheiro no piso superior. Foram construídos para servir de moradias populares e eram vendidos ou alugados para operários e pequenos comerciantes.

Com o passar dos anos, as bordas dos quarteirões foram adensadas. Comércios e prédios substituíram as casas do contorno. E as vilas sobraram no seu interior. São dezenas de casas pequenas, muitas em ruas com árvores centenárias, muita vegetação. Habitadas por pessoas solteiras, casais jovens e aposentados.

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As pequenas casas abrem direto para a rua e criam um ambiente simples e acolhedor de uma pequena cidade do interior. Pessoas conversam sentadas na rua enquanto crianças brincam livremente. Hoje são cobiçadas, pois permitem uma vida quieta e simples no centro do burburinho. Como as construções são baixas, criam uma vista agradável para os fundos dos prédios que as cercam. São um dos charmes desses bairros tão agredidos.

A razão das vilas terem resistido à especulação imobiliária se deve à impossibilidade de substituir as fileiras estreitas de casinhas por edifícios. Mesmo quando existem duas fileiras, uma de cada lado da rua, os terrenos em forma de tripas inviabilizam construções altas. E como as ruas no interior das vilas são públicas, com nome, CEP e registro na Prefeitura, não podem ser incorporadas aos terrenos, da mesma maneira como qualquer outra rua não pode ser invadida ou comprada. Ruas, é bom lembrar, são bens públicos. Pertencem a todos nós.

Agora o vilão: a Câmara Municipal, cedendo à demanda de uma incorporadora, em uma decisão sem precedente, verdadeiramente imoral (senão ilegal) aprovou um projeto de lei que permite a cidade vender a rua de uma das vilas para a incorporadora. Se o prefeito sancionar a lei, a rua será vendida à incorporadora, que já comprou as casinhas da vila.

Com a posse da rua, e de todas as casas da vila, o espaço no interior do quarteirão se torna um único terreno. Agora suficientemente grande para receber um edifício. É claro que a incorporadora, além de comprar todas as casinhas, e a rua propriamente dita, ainda comprou o ar (sim, a atmosfera acima da vila) e vai ocupar todo esse volume com um alto edifício de luxo.

É inacreditável a incorporadora ter corrido o risco financeiro de comprar toda a vila sem saber se conseguiria aprovar o projeto de lei na Câmara Municipal. Se o prefeito não sancionar a lei, o projeto colapsa. O que estou chamando de vilão talvez seja uma quadrilha.

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O perigo está no precedente. Se uma rua pode ser vendida e incorporada em um prédio, o caminho está aberto para outros assassinatos dessa natureza. As vilas, as pequenas praças e os parques que se cuidem, podem ser todos assassinados aos poucos. E a vida na cidade vai piorar.

Numa cidade onde o número de carros e prédios cresce mais rápido que as áreas de ruas e parques, a Prefeitura vender uma rua, qualquer que seja, beira a loucura. É um assassinato.

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