terça-feira, 5 de agosto de 2025

Carmen Miranda: como estrela portuguesa virou maior símbolo internacional do Brasil, FSP

 Edison Veiga

Bled (Eslovênia)
BBC News Brasil

A morte de Carmen Miranda há 70 anos, na madrugada de 5 de agosto de de 1955, precipitou um solene Carnaval fora de época no Rio de Janeiro que ela tanto amava.

Nem bem a notícia chegou ao Brasil e, pelo Repórter Esso, a Rádio Nacional a transmitiu ao país, todas as emissoras brasileiras passaram a tocar hits eternizados pela cantora e atriz conhecida como "A Pequena Notável". "Taí, Disseram que voltei americanizada, O que é que a bahiana tem?", tão alegres e carnavalescas, comunicavam a tristeza que permeava a nação.

Quem conta a história é o jornalista Ruy Castro, na mais completa e detalhada biografia a respeito dessa mulher que, nascida em Portugal e alçada ao estrelato internacional nos Estados Unidos, onde morreu, acabou se tornando o maior símbolo mundial da cultura brasileira, a Brazilian Bombshell.

Em "Carmen - A Vida de Carmen Miranda, a brasileira mais famosa do século XX" (Companhia das Letras, 2005), Castro afirma que as músicas de Carmen, trazidas novamente à tona naquele mês, funcionaram como "uma espécie de senha para um carnaval em agosto".

Segundo desejo de Carmen Miranda, ela foi enterrada no Rio, no cemitério São João Batista. De acordo com "Carmen Miranda foi a Washington" (Record, 1999), escrito pela jornalista Ana Rita Mendonça, 12 igrejas do Rio celebraram missa de sétimo dia em memória da artista.

O caixão chegou ao país apenas na semana seguinte e, na noite do dia 12 para o 13 de agosto, houve um velório aberto na Câmara dos Vereadores.

"Alguns se chocaram com o fato de Carmen estar vestida de vermelho, penteada e maquiada; outros se encantaram com isso - em Hollywood, até a morte era em Technicolor!", escreve Castro.

"Por toda a noite de 12 para 13 de agosto, o Rio desfilou em silêncio diante de Carmen. E gente de outras cidades, usando todos os transportes disponíveis, veio se despedir dela."

"Nem o frio da madrugada afugentou seus adoradores", ressalta o escritor.

Membros da Velha Guarda, como Pixinguinha, Donga, João da Baiana e outros companheiros, tentaram tocar Taí para saudá-la pela última vez, postados nas escadarias da Câmara. Não conseguiram.

"As gargantas se fechavam, o saxofone e a flauta não produziam som, a emoção era muita", descreve Castro. A marchinha acabou sendo entoada por um coro de mais de 50 mil vozes.

Em dado momento, o cortejo rumo ao cemitério, em carro de bombeiros, foi seguido por um caminhão de som que tocava os discos de Carmen. O último percurso da estrela, assim, foi como os fãs gostavam de vê-la: com música, muita música.

Carmen Miranda, em filme de 1953 - Arquivo Nacional

Uma carreira ascendente

Maria do Carmo Miranda da Cunha nasceu em Marco de Canaveses, em Portugal, em fevereiro de 1909. Sua família já havia decidido emigrar para o Brasil. Carmen Miranda chegou ao Rio de Janeiro com menos de 1 ano de idade.

Irmã de outros cinco, a garota estudou em uma escola de freiras e, aos 14 anos, teve seu primeiro emprego. Trabalhou em uma loja de gravatas e, depois, em uma chapelaria.

Era uma menina que já gostava de cantar e era elogiada por isso. Em 1928, foi apresentada à Rádio Sociedade Professor Roquete Pinto e passou a se apresentar lá. No ano seguinte, gravou sua primeira música, o samba Não Vá Sim'bora, composição de Josué de Barros.

Dali por diante, foi só ascensão. Em 1930, Carmen Miranda gravou a marcha-canção Pra Você Gostar de Mim, também chamada de Taí. O disco vendeu 35 mil cópias apenas no ano de lançamento - um recorde que fez com que a jovem cantora fosse aclamada como "a melhor do Brasil".

Carmen se tornou uma das estrelas da chamada "era de ouro" do rádio no Brasil e, ao mesmo tempo, passou a emprestar corpo e voz ao início da indústria cinematográfica no Brasil - especialmente, nos musicais.

Depois de aparições tímidas em produções anteriores, como o longa musical Alô, Alô, Brasil, de 1935, ela teve o espaço de um estrela popular de primeira grandeza.

Carmen Miranda, em foto dos anos 1940 - Arquivo Nacional

Carmen Miranda viveu anos enfileirando um projeto atrás do outro. Era uma fase de filmes que tinham enredo feito apenas como pretexto para encadear números musicais.

Autora de um estudo acadêmico sobre Carmen Miranda, a pesquisadora Renata Couto, professora da Universidade Unigranrio Afya, acredita que paire um preconceito sobre a relevância da artista. "Boa parte das pessoas faz um julgamento muito apressado sobre ela", diz à BBC News Brasil.

"Parte disso, por ela ser uma mulher. A outra parte é pela figura que ficou consagrada da Carmen, que incorpora essa baiana estilizada, quase uma caricatura do que seria o Brasil."

A baiana estilizada conquista os EUA

Em 1939, o filme "Banana da Terra" apresentou a versão mais icônica de Carmen Miranda: ela vestindo uma versão estilizada de um figurino que representava uma baiana tradicional.

No número, ela interpretava O que é que a bahiana tem?, de Dorival Caymmi - e muitos apontam que o sucesso desse filme acabou impulsionando a carreira e o prestígio do compositor e cantor.

Fato é que Carmen, uma portuguesa criada no Rio de Janeiro, incorporou essa imagem caricaturada da baiana em suas apresentações dali por diante. Era este seu figurino quando, um pouco antes do Carnaval de 1939, ela se apresentou no badalado Cassino da Urca e chamou a atenção do produtor americano Lee Shubert, que estava na plateia.

Shubert era dono da empresa que geria metade dos teatros da Broadway. Um magnata do entretenimento americano, portanto. Ele contratou a artista para se apresentar lá, e, em maio daquele ano, ela embarcou rumo a Nova York.

Nos Estados Unidos, Carmen Miranda fez sucesso com suas vestes estilizadas e o arranjo de frutas sobre a cabeça. Intelectuais brasileiros torceram o nariz: para eles, aquilo era uma visão estereotipada e errônea do Brasil.

"Carmen foi uma das primeiras artistas a representar o Brasil no exterior de forma icônica, antes mesmo de Pelé ou da bossa nova", diz à BBC News Brasil Gisele Jordão, coordenadora do curso de Cinema e Audiovisual da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

"A imagem do Brasil como país alegre, exótico e musical tem muito da marca que ela deixou. Essa projeção foi absorvida pela publicidade, pelo turismo e pela diplomacia cultural, criando um 'Brasil tipo exportação' que ainda hoje molda o imaginário internacional."

Soft power

Com a Segunda Guerra Mundial, a chamada política de boa vizinhança entre os Estados Unidos e a América Latina acabou favorecendo uma artista como Carmen Miranda.

Ou pode ter sido o contrário. Como documenta Ruy Castro, ela já era um sucesso inquestionável antes de a política de aproximação ser implementada.

"Ela já tinha uns dez anos de sucesso aqui no Brasil quando foi aos Estados Unidos. Evidentemente, conquistou o mundo com a verve artística, a comunicabilidade, a extroversão. Era uma mulher notável quanto à expressão", ressalta à BBC News Brasil o musicólogo Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor aposentado da Universidade Estadual Paulista e ex-professor colaborador da ECA-USP.

Tão logo a estrela começou a se apresentar nos Estados Unidos, projetos cinematográficos foram surgindo para ela, que logo ganharia projeção internacional.

Cartaz do filme 'Banana da Terra', de 1939 - Domínio Público

"Não há como negar a onipresença da Carmen Miranda nos anos 1930 e, sobretudo, 1940. Seu gigantismo e sua exuberância marcaram e marcam até hoje o mundo teatral, musical e cinematográfico", diz Ikeda.

Nesse sentido, Castro explica que a política da boa vizinhança pode até ter se aproveitado do brilho de Carmen - e da sua conveniente caracterização como brasileira, ainda que uma caracterização estereotipada.

Gisele Jordão vê um alinhamento "total" entre Carmen Miranda e o projeto de soft power do governo americano. "A presença dela em Hollywood não é fruto apenas de seu talento, mas também de um projeto geopolítico", ressalta a professora.

"Durante a Segunda Guerra, os Estados Unidos buscavam estreitar laços com a América Latina para conter influências europeias e garantir apoio hemisférico. Carmen se encaixou perfeitamente nessa estratégia: era latina, mas controlável; exótica, mas divertida; uma embaixadora cultural informal", destaca.

"Seu corpo e sua voz foram mobilizados como instrumentos simbólicos de um Brasil amigo e cooperativo."

Mas para Ikeda, entretanto, "o que não se pode é atribuir à Carmen Miranda [a intenção] de ser ela um instrumento dessa projeção política e artística dos Estados Unidos no mundo".

Seu auge no cinema foi durante os anos da Segunda Guerra - ela estrelou 8 de seus 14 filmes nessa primeira metade dos anos 1940. Suas personagens não eram identificadas como brasileiras, mas sim latino-americanas, de modo genérico e indefinido.

A essa altura ela já havia se instalado nos Estados Unidos. Como convinha a uma estrela, morava em Beverly Hills, na Califórnia. Foram 14 anos sem pisar no Brasil, para onde voltou, em férias, em dezembro de 1954.

Em uma consulta, seu médico a diagnosticou como dependente química - ela abusava de barbitúricos e álcool - e submeteu-a a um tratamento de quatro meses em uma suíte do hotel Copacabana Palace. Ela voltou aos Estados Unidos somente em abril de 1955.

Ainda faria uma turnê em Las Vegas e em Cuba e receberia uma proposta do canal CBS para ter um programa semanal na TV. No dia 4 de agosto de 1955, participou do programa de Jimmy Durante, na NBC. Foi encontrada morta no corredor da sua casa na manhã seguinte, vítima de um ataque cardíaco.

Carmen Miranda fotografada por Annemarie Heinrich em 1935 - Domínio público

Símbolo de brasilidade?

Para Jordão, Carmen se tornou símbolo de brasilidade porque encarnou, de forma "performática e midiática", um Brasil "que o próprio Brasil estava tentando entender e vender".

Renata Couto ressalta que não se pode ignorar o papel de Carmen Miranda como uma "mulher extremamente revolucionária, que tinha um comportamento pioneiro" em seu tempo: "Ela não se encaixava nos padrões tradicionais e esperados do que era ser mulher nas décadas de 1920 e 1930 no Brasil".

Jordão ressalta que, embora tivesse nascido em Portugal, a artista cresceu no Brasil e teve sua identidade artística forjada no rádio, nos teatros de revista e no início da indústria fonográfica nacional.

"Ao assumir elementos da cultura popular, especialmente a música afro-brasileira e os trajes das baianas, ela se tornou uma tradução possível, ainda que estilizada, do que se queria projetar como 'alma brasileira'. É um caso clássico de uma brasilidade construída mais pela forma como é vista do que pela realidade que representa."

"Essa imagem foi construída a muitas mãos. Envolve o rádio, a indústria cultural, o Estado Novo, o cinema hollywoodiano e também o contexto da política de Boa Vizinhança com os Estados Unidos", diz Jordão.

"Carmen foi moldando sua persona a partir de códigos reconhecíveis: a tropicalidade, a sensualidade, o ritmo do samba, mas sempre com uma estética amplificada, quase caricatural."

Era um Brasil do teatro de revista. Lúdico, alto astral, popular e festivo. "Não era uma representação direta do Brasil real, mas sim de um Brasil performado, que pudesse circular internacionalmente", afirma Jordão.

"Sua imagem visual, com turbantes, frutas e tecidos exuberantes, é resultado de escolhas estéticas que dialogavam tanto com o imaginário externo quanto com a cultura visual interna", prossegue.

Para Couto, no entanto, Carmen Miranda vendia não uma ideia de Brasil, mas de América Latina: "Foi uma mulher latina, representou a latinidade. Essa imagem da Carmen como Brasil tipo exportação, eu diria que é uma coisa muito recente".

Os elementos da criação da personagem Carmen Miranda também são creditados a Dorival Caymmi. O autor de O que é que a bahiana tem?' orientou a cantora até no gestual para o filme de 1939. Para Jordão, a relação de ambos foi de uma "dinâmica de tradução performática".

"Ela potencializou a letra, exagerando nas cores. Mas a música já descrevia esse Brasil tropical, essa baiana que requebra bem, essas coisas", pontua Ikeda.

Jordão concorda. "Enquanto Caymmi construía uma Bahia musicalizada com traços de melancolia, espiritualidade e identidade negra, Carmen devolvia essa imagem sob a lente do espetáculo: colorida, exagerada, teatral", comenta.

"Ela não era exatamente um alter ego, mas uma amplificação estilizada do universo que Caymmi evocava. Nessa amplificação, ganha-se potência midiática, mas perde-se parte da densidade simbólica."

Para a especialista, este é mais um exemplo da ambiguidade de sua trajetória. Afinal, Carmen foi o que se diz de "uma mulher à frente do seu tempo, carismática, irreverente e pioneira".

"Mas também um corpo a serviço de estereótipos e interesses geopolíticos. Ao performar a baiana em Hollywood, ela transformou um símbolo de resistência negra em emblema de uma brasilidade exportável, palatável ao gosto estrangeiro, mas distanciada de suas raízes afrobrasileiras."

Este texto foi originalmente publicado aqui.

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