Como é insuportável entrar nos museus das grandes cidades! Não falo das multidões que frequentam o espaço para tirar selfies com a Mona Lisa.
O problema está nos museus mesmo —descrições ideológicas, invariavelmente "woke", das obras diante de nós. O visitante, modestamente, quer contemplar um pouco de beleza formal para recuperar da feiura do mundo. Mas o ideólogo, com seus dedos gordurosos e grosseiros, introduz política nesses santuários laicos.
A democracia também se destrói assim: quando os lugares de repouso cívico são conspurcados pela mente ideológica.
São incontáveis os livros que, nos últimos anos, tentaram explicar à plebe como salvar a democracia. Mas raros são os ensaios que começam pelo óbvio: salvar a democracia significa manter distância das seitas políticas. Significa "solidão cívica", para usar o conceito luminoso do filósofo Robert Talisse.
No ensaio com o mesmo título ("Civic Solitude: Why Democracy Needs Distance", Oxford Univertsity Press, 208 págs.), Talisse relembra que uma democracia pressupõe uma sociedade de iguais que se autogovernam. É um conceito revolucionário, historicamente falando, porque dispensa o paternalismo benigno ou maligno de reis ou tiranos.
É uma forma de afirmação da autonomia individual: ninguém é superior a mim, o que naturalmente implica que ninguém é inferior. Mesmo os adversários são dotados dessa igualdade basilar —e é meu dever cívico encará-los como iguais, dotados das suas razões e interesses.
A democracia exige civilidade e imaginação, escreve Robert Talisse, para seguidamente descer ao inferno das sociedades de hoje: onde está essa civilidade? Onde está essa imaginação de nos colocarmos no lugar do outro, ainda que discordemos dele?
Não está. Especialistas diversos falam em "polarização", como se isso fosse o problema. Não é: uma sociedade democrática é uma sociedade polarizada, sempre, porque pessoas diferentes têm diferentes concepções de vida. Só deseja a uniformidade quem, no fundo, não nasceu para democrata.
A polarização só é um problema quando somos incapazes de pensar politicamente para lá das nossas "lealdades de facção", para usar a expressão do autor.
Explico melhor: quando só funcionamos em alcateia, não viramos apenas lobos. Tornamo-nos mais dogmáticos e mais confiantes no nosso dogmatismo.
Além disso, a política, que é uma parte da vida em conjunto, se converte em fenômeno totalitário —e no sentido preciso da palavra: tudo é política, até a forma como nos vestimos, a linguagem que usamos, os espaços que frequentamos etc.
Robert Talisse usa como exemplo um estádio de futebol. Quando assistimos a um jogo do nosso time, torcemos por ele, vestimos suas cores, perdemos a cabeça com o juiz, insultamos a torcida adversária. Felizmente, esse transe só dura 90 minutos.
Agora imagine viver num estádio de futebol, entre a torcida, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Não imagine. Essa é a condição do "democrata" contemporâneo —ou, melhor dizendo, do "hooligan" contemporâneo. Essa é a imagem que você vê no espelho.
Para grandes males, grandes remédios, aconselha Talisse. A "saturação política" precisa de "higiene cívica", escreve ele. E oferece outra metáfora poderosa: um piloto de avião tem de observar certas regras para garantir a segurança dos passageiros. Dormir bem. Não beber álcool. Não acumular horas excessivas de voo. E, claro, checar o estado do avião.
Participar no jogo democrático também exige certas precauções. Como preservar espaços mentais e até físicos onde a política do cotidiano não entra, muitos menos seus fanatismos de seita.
A leitura de obras clássicas e a fruição da grande arte não servem apenas para apurar nosso sentido estético. Elas permitem que habitemos territórios estranhos, não contaminados pelo lixo ideológico, onde podemos refletir e imaginar livremente.
Iguais funções têm bibliotecas, museus, parques públicos —refúgios onde podemos nos abrigar do "idioma tóxico da democracia de facção", escreve o filósofo.
Quem pensa que esses lugares são gastos supérfluos está enganado. Eles são os cilindros de oxigênio da democracia, onde podemos respirar outros ares. Se também os conspurcarmos com as neuroses da política, não teremos para onde fugir.
Salvar a democracia começa em cada um de nós, eis o ponto de Talisse. Ou, para usar esse verso que Thomas Hardy escolheu como título do seu melhor romance, significa ficar longe das multidões enlouquecidas.
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