Palavras são bichos muito engraçados. Que sentido faz que a tradição e a traição tenham um ancestral comum, o verbo latino "tradere", se são vocábulos tão diferentes e quase opostos em espírito —o primeiro traduzindo um patrimônio ancestral que impõe respeito e o segundo, uma deslealdade, uma quebra de confiança?
Como diria Chicó, só sei que foi assim. O mais curioso é que essa bifurcação semântica não teve origem em derivas históricas posteriores, como ocorre com frequência. O "tradere" do latim clássico já trazia os dois significados de berço.
A explicação é mais simples do que parece. O sentio do verbo (nascido de "trans + dare") era basicamente o de dar algo a outro, isto é, entregar –palavra que também combina lados positivos e negativos, dependendo daquilo que (e para quem) se dê. Cabe dentro dela a distância astronômica que separa o entregador do entreguista.
É assim que o ato de "tradere" abarcava tanto o que se ensinava a discípulos ou se deixava de herança aos filhos, ideia que veio a dar na palavra tradição, quanto aquilo –causa ou pessoa– que se atraiçoava de forma vil para entregar ao inimigo ou ao carrasco.
A traição chegou primeiro ao português, ainda no século 13. Era o tempo em que os falantes daquele canto da Península Ibérica se empenhavam em exterminar as consoantes latinas que vinham entre vogais. Mataram o D de "tra(d)ição" sem dó, como o plano Punhal Verde e Amarelo previa fazer com Alexandre de Moraes.
A tradição demorou bem mais a dar as caras. Só desembarcou por aqui no início do século 17, quando, envergonhada de suas raízes plebeias, nossa língua desandou a buscar formas cultas diretamente no latim para se gentrificar. Desse modo, como Alexandre de Moraes quando o comandante do Exército disse não ao golpe de Bolsonaro, o D de "tradição" teve sua vida poupada.
Se as palavras são bichos muito engraçados, a história consegue ser ainda mais pândega. Basta ver o modo como a família do ex-presidente e seus partidários remanescentes tentam, esgotados os demais recursos, refundir tradição e traição na tentativa de livrá-lo da cadeia inevitável.
A tradição é uma bandeira associada à banda direita do espectro político-ideológico. Vamos deixar de lado a hipocrisia oportunista que sempre esteve associada a essa defesa dos "valores tradicionais" e apontar que, de todo modo, a pátria é um dos mais sacrossantos entre eles.
No entanto, eis que gente à beça dessa mesma banda direita não hesita nem por um segundo em oferecer de bandeja a soberania nacional –instituições, riquezas, dignidade, tudo– a uma superpotência nuclear estrangeira. Pior: a uma superpotência nuclear estrangeira governada por um autocrata infantiloide e desequilibrado.
Sim, o momento histórico é inédito e muito intrigará os estudiosos do futuro, se futuro houver. Quem podia imaginar que tradição e traição se dariam as mãos depois de tantos séculos? No tempo de Judas Iscariotes esse tipo de trairagem saía muito caro. Está saindo baratinho agora, mas o jogo não terminou.
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