O governo deveria evitar avacalhações? De arranque, a frase soa àquelas provocações que ― feitas para arder nas redes sociais ― já emergem trajando capa de polêmica. Porém, se a vestimos de gravata e a sentamos calmamente à mesa, percebemos que a interrogação revela algo que Hannah Arendt chamaria de “banalidade do esvaziamento”: a redução da política ao ruído do meme, à espuma brejeira do dia, àquele risinho condescendente de quem se acha esperto demais para levar o coletivo a sério. Entre um “kkkk” e outro nos comentários, escorre por ralos virtuais a chance de reinventar o comum, enquanto a Pátria espera, com a paciência trágica das heroínas gregas, o gesto que a redima do descaso. Em 1750, Montesquieu anotou no Livro XI d’O Espírito das Leis que “o governo deve ser como a alma do corpo; invisível, mas presente em cada órgão”. Se trocarmos “invisível” por “imperceptível a olho nu do feed” ― licença que o velho Barão, piscando do além, talvez permitisse ―, resta-nos a mesma tarefa: criar circunstâncias em que o debate público não seja mero circo. Afinal, ninguém paga ingresso para assistir ao garçom incendiar o próprio restaurante; paga-se, isso sim, pela epifania da chama controlada, pelo espetáculo que cozinha algo nutritivo. A avacalhação é quando o fogo queima os talheres e fica só a fuligem. Contudo, por que será tão fácil transformar o dissenso em piada, e tão difícil converter o humor em lição civilizadora? Rubem Braga, cronista que insinuava f ilosofar ao coçar o nariz, uma vez apontou que “o maior problema da pátria é a falta de sombra na praça ao meio-dia”. Traduzo: insistimos em debater sob sol a pino, sem o frescor do tempo lento. A sombra ― equivalente metafórico do famoso ponto de ponderação aristotélico ― permitiria à conversa crescer em tonalidades, afastando o déjà-vu das mesmas bordoadas retóricas. Mas cadê o freio? De cada teclado se levanta um Catão pronto a fulminar o interlocutor; e se sobra um pouco de polidez, logo alguém grita “covarde!”. Entre burrice e covardia, escolhemos a terceira via: o deboche, que alivia o incômodo da perplexidade. É aqui que entra o nosso dilema governamental. Pedir ao Estado ― entidade abstrata que, no Brasil, ora surge como paizão autoritário, ora como sumiço de pai ausente ― que inaugure uma situação realmente produtiva parece ingênuo. Ainda assim, é a aposta ilustrada que nos resta. No século XVII, o florentino Guicciardini confidenciou, em seus Ricordi, que “a república vive de ocasiões”; não de projetos mirabolantes, mas de minúcias bem aproveitadas. Talvez devêssemos, portanto, moderar o apetite de reformas titânicas e buscar micro gestos. Imaginem um fórum público em que as planilhas do orçamento estejam expostas como vitrines: todo mundo veria para onde vai cada centavo do feijão escolar, cada níquel do asfalto. Não é utopia digital; é, no fundo, pedagogia republicana. E pedagogia se faz com exemplos pequenos, porém repetidos ― “as abelhas”, ensinava Maquiavel em suas fábulas, “constroem impérios de cera com voos diminutos”. Volto a Rubem Braga: certa crônica sua narra um vendedor de frutas que ria alto à porta do Palácio do Catete, na véspera do suicídio de Getúlio. O riso, ali, ganhava tons de nervo, ocaso e pressentimento. O Brasil, quando ri de si próprio, pressente. Rir para se proteger é recurso ancestral; mas rir sempre é não encontrar saída. Nosso governo, se ambiciona transcender o papel de vilão ou de piada pronta, precisa atiçar outro tipo de riso ― o libertador, aquele que, depois de gargalhar, estende a mão para reconstruir. Pensemos em José Bonifácio, que sabia contar anedotas ásperas sobre a corte portuguesa, mas, findo o gracejo, sentava-se para redigir as bases da independência; ou em Machado de Assis, que ironizava ministros ao mesmo tempo em que fundava a Academia Brasileira de Letras, erguendo tijolos no lugar da ruína. “Criar pelo menos uma situação” ― a expressão mínima, quase resignada, é também uma centelha de otimismo. Dos romanos herdamos o princípio da utilitas communis: a utilidade pública torna legítimo qualquer esforço estatal. Se o ministério da vez resolvesse, por exemplo, instituir cafés filosóficos mensais, transmitidos em rádio e internet, onde economistas, poetas e líderes comunitários conversassem sem script, já teríamos um laboratório de cidadania. Não é tão complicado quanto parece. A França o fez nos anos 1990 com seus cafés philo, e o hábito ainda ecoa nas esquinas de Paris, onde jovens discutem Spinoza com a leveza de quem comenta o último álbum de chanson. Copiar sem culpa é saudável; reinventar a cópia, indispensável. Talvez alguém resmungue: “Mas a culpa não é só do governo; o povo quer mesmo é pancadão e torcida organizada”. Bobagem fatalista. Povo, lembra-nos Darcy Ribeiro, “é projeto aberto, nunca pronto”. O Estado deve, portanto, desenhar praças onde se dance e bibliotecas onde se cante. O limite não está em Braga ou Montesquieu, tampouco em Arendt; está na nossa disposição interior de superar a inércia cínica. Quando a crônica vira denúncia eterna, perde a ternura; quando vira loa bajulatória, perde a honestidade. O equilíbrio ― esta arte tão espinhosa ― consiste em ser vigília poética, índice de esperança. Repare que aqui fazemos quase um pedido de esmola ao bom senso, uma migalha de seriedade num banquete de pasquinadas. Pois bem: quem sabe a aventura comece pela convocação de um “Dia Nacional da Escuta Ativa”, quando escolas, sindicatos e assembleias troquem discursos por roda de conversa, onde cada fala dure três minutos e venha sucedida de dois de silêncio. Silêncio é luxo civilizatório; nele amadurece a palavra futura. Foi em longas noites silenciosas que Celso Furtado concebeu sua Formação Econômica do Brasil, e foi em pausas silenciosas, entre o tinir dos talheres na Havaninha da rua do Ouvidor, que Machado de Assis pariu a ironia de Memórias Póstumas. Semear situações frutíferas exige, por certo, investimento ― nem que seja só de imaginação. Aqui me ocorre Fernando Pessoa, fingidor maior, que no heterônimo Álvaro de Campos reclamava: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Sonhar é, paradoxalmente, reconhecer a própria impotência e, ainda assim, teimar. Que outro verbo define a democracia senão esta teimosia compartilhada de imaginar saídas quando a realidade parece um beco? E se, amanhã, a manchete trouxesse: “Governo lança plataforma de debates vinculante para políticas públicas: qualquer proposição popular com cem mil assinaturas vai direto à pauta”? Veríamos lágrimas de ceticismo ou risadas de desprezo? Pouco importa. Importa que a plataforma existisse, e que, uma vez existindo, constrangesse a inércia de quem prefere a avacalhação. O simples ato de estabelecer o instrumento joga luz sobre a ausência anterior, como o poste que denuncia a rua antes erma. Um risco, dirá o velho do sofá; um risco necessário, replicará a moça que ensaia o futuro. Ao final, fico com a lição de Camus: “Criar é viver duas vezes”. Criar uma situação política autêntica — ainda que pequena — é viver de novo o pacto fundador da cidadania. Caso contrário, restam-nos os golpes de espírito sem espírito, as bravatas que alimentam manchetes mas não sustentam pontes. Sem a ponte, prossegue o abismo; e, sem o abismo, não haveria poesia?, pergunta o dândi niilista. Sim, mas poesia que não se atravessa é pura liturgia abstrata. O Brasil, nosso livro inacabado, exige que a lírica se converta em passo, em ação, em cimento ― nem que seja na escala de um beija-flor tentando apagar incêndio com gotas. No mais, deixo o convite: saiamos das caixas de comentários e caminhemos até a esquina onde mora o outro. Lá, talvez, encontremos a tal “situação” brotando tímida, qual flor no asfalto drummondiano. Entre a flor e o buraco, escolhemos a f lor. Entre o riso vago e a escuta firme, fiquemos com a escuta. E, se nos acusarem de ingênuos, lembremos que toda grande virada histórica começou com quem ousou dizer: “Isto é, o governo deve tentar…”
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