O espiritismo é uma religião? Que, por sinal, é em sua essência conservadora, vide pesquisas que apontam uma maioria de bolsonaristas entre seus adeptos.
Não e não. Assim responde Alexandre Caldini Neto, estudioso do tema há quase quatro décadas, num livro que descostura alguns sensos comuns sobre a doutrina que, no imaginário nacional, ficou tão associada à imagem de médiuns como Chico Xavier e o mais infame, João de Deus, condenado por abusos sexuais diversos.
No recém-lançado "A Essência do Espiritismo", Caldini Neto prefere tratar seu objeto-tema como uma filosofia mais à moda de Allan Kardec, o francês que a fundou 168 anos atrás, com a publicação do seu "Livro dos Espíritos".
O espiritismo, segundo o autor, ganhou contornos religiosos no Brasil, mas é em sua origem uma "doutrina filosófica" que tem a "parte experimental das manifestações", que seriam os contatos de espíritos.
Aqui valem as palavras de Kardec: "Ora, todos os dias sou visitado por pessoas que nada viram e creem tão firmemente como eu, apenas pelo estudo que fizeram da parte filosófica; para elas o fenômeno das manifestações é acessório e o fundo é a doutrina, a ciência".
A roupagem religiosa, contudo, vingou por aqui, a ponto de espiritismo ser uma das crenças listadas no Censo.
O quinhão espírita na população já foi maior, aliás. O levantamento demográfico apontou que, se em 2010 eram 2,2% dos brasileiros, caíram para 1,8% em 2022 —de 3,8 milhões de pessoas para 3,2 milhões.
Caldini Neto tem algumas hipóteses para o fenômeno.
Ao longo do século 20, o espiritismo conquistou a simpatia do país, com um caráter dócil e ativo na caridade. "Passou a ser visto como uma religião, coisa que afirmo, citando Kardec, não é".
Aí entra um componente de intolerância histórica com crenças de matriz africana. "Apesar de igualmente fazerem a caridade e promoverem o bem", e também terem como base a mediunidade, "sempre sofreram muita discriminação".
Então acontecia direto de umbandistas ou candomblecistas se declararem espíritas "buscando fugir do estigma". Nos anos últimos, movimentos de valorização da cultura negra, ele afirma, levou adeptos a "finalmente se sentirem mais seguros e orgulhosos para assumir suas religiões".
O estudioso também conjectura que a doutrina espírita, "do modo como foi sendo configurada no Brasil, religiosa e conservadora, não se comunica bem com os dias atuais e ainda menos com as gerações mais novas".
Uma coisa é o pensamento legado por Kardec, que "traz lógica, serenidade, estudo, autonomia", diz o autor. Outra bem diferente é a religiosidade presente nos romances que médiuns brasileiros dizem psicografar, que viriam encharcados de "maniqueísmo, moralidade, julgamento".
O autor detecta uma abordagem "muito arrogante e inclemente" dos espíritas brasileiros em geral sobre tópicos facilmente polarizantes, como aborto, direitos LGBTQIA+ e eutanásia. "Tratamos esses graves assuntos de forma incoerente e em total desacordo com temas estruturantes do espiritismo, como o respeito ao livre-arbítrio, a reencarnação e a compaixão."
Um olhar atento ao que Kardec escreveu no século 19, na interpretação de Caldini Neto, inviabiliza qualquer preconceito com a homossexualidade, por exemplo. Os espíritos, escreveu o europeu, não têm sexo "como o entendeis, porque o sexo depende do organismo físico", e eles não são feitos de carne. Pondera Caldini Neto: "Se quem ama é o espírito, não o corpo, qual o problema em dois espíritos se amarem, independentemente dos corpos que utilizam naquele momento?"
O aborto talvez seja o mais minado dos campos. Kardec é claro ao afirmar, no que seria uma resposta que espíritos lhe teriam soprado: "A mãe, ou qualquer pessoa, cometerá sempre um crime ao tirar a vida de uma criança antes do seu nascimento, porque é impedir a alma de suportar as provas das quais o corpo devia ser instrumento".
Mas há sutilezas nessa questão, argumenta o escritor. Kardec também diz no livro máximo do espiritismo que a união entre alma e corpo "começa na concepção, mas só se completa no instante do nascimento", e que "o grito que sai da criança anuncia que ela se encontra entre os vivos e servidores de Deus".
Ao apresentar uma leitura menos dolosa do aborto, Caldini Neto afirma que, "durante a gravidez, o espírito designado para esse corpo vive fora dele, estando ligado, mas não ativo no feto". Haveria apenas vida biológica, e não espiritual, no feto, portanto.
Ele recorre a dados como o fato de 6 em cada 10 vítimas de abuso sexual no Brasil serem menores de 14 anos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Seriam criminosas se abortassem filhos de seu violador?
"É bom frisar que ninguém é a favor do aborto. Eu tampouco. Mas existem situações em que o trauma do aborto talvez seja a solução menos ruim. E, do ponto de vista do espírito, é uma oportunidade perdida que terá que ser recomeçada."
O autor , que fez carreira no universo executivo e já presidiu a Editora Abril, diz ter uma "visão mais contemporânea do espiritismo", mas discorda do adjetivo progressista para ele. "Sou espírita e pronto."
Mas admite um "espiritismo aberto, progressivo e, aqui sim cabe o termo, progressista" ao conciliar a doutrina com a ciência. "O espiritismo não é uma revelação divina imutável e inquestionável, mas uma filosofia de elaboração coletiva, de espíritos. Kardec disse claramente que, conforme a ciência avançar, se algum preceito do espiritismo se mostrar em erro, o espiritismo deve se corrigir."
É o caso, para ele, do uso medicinal de princípios ativos extraídos da maconha, como o canabidiol, eficientes para tratar males como dores e convulsões e adotado em casos de Alzheimer. Se for para "ajudar o ser humano a minimizar seu sofrimento, viver melhor e progredir", diz, o espiritismo está dentro. Ao menos aquele em que acredita.
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