Assim como médicos não comemoram a morte, advogado não vibra com prisão. Afinal, liberdade é como antibiótico. Qualquer país democrático, contudo, possui mecanismos para conter infratores. A modernidade surge com a rejeição da barbárie. Quer dizer: a liberdade não é ilimitada.
O caso da tentativa de golpe ocorrido no país deixou de ser discutível. Afinal, são mais de 500 réus já condenados definitivamente. Agora só resta saber a responsabilidade de personagens como Jair Bolsonaro. Ocorre que, ao lado desse processo do 8 de janeiro, o ex-presidente se envolveu em novos imbróglios jurídicos, em conjuminação com seu filho Eduardo —quem, com orgulho e fanfarra, conspira contra seu próprio país a ponto de dizer, à la Shakespeare, que "se tudo der errado, pelo menos nós estaremos vingados". O "nós", para ele, são "os Bolsonaros".
Resultado: como diz o ditado, de tanto ir ao moinho, a raposa perde o focinho. Foi o que aconteceu com Jair: depois de coagir com Eduardo, inclusive com apoio financeiro, teve contra si a decisão de usar tornozeleira eletrônica e outras medidas substitutivas de prisão. Já saiu, então, no lucro.
Tal decisão foi referendada pelo colegiado da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Pode-se dizer que o ministro Alexandre de Moraes coloca a prisão preventiva em segundo plano, preferindo apostar em medidas menos graves —por isso, a prisão domiciliar. Vejamos: a prisão, à luz da Constituição, é sempre a última medida. Por isso, a lei processual traz outras medidas menos graves do que a prisão, como recolhimento de passaporte, restrições de circulação etc. E o ideal, nessa perspectiva, é que, antes da decretação de uma prisão preventiva, sejam impostas medidas menos duras, porque a regra é a liberdade.
Sendo isso verdadeiro —e o é—, Bolsonaro já está na terceira chance: primeiro, o passaporte apreendido; segundo, a tornozeleira; e, terceiro, a prisão domiciliar em sua confortável residência em Brasília. Livrou-se da preventiva.
Ou seja, o controle em relação a ele —com o intuito de evitar uma sempre indesejável prisão preventiva— está escalonando. Sobre o descumprimento da cautelar que demandou esse maior rigor, dúvida não há: as medidas cautelares impostas a Bolsonaro previam a proibição de utilização de redes sociais, inclusive por intermédio de terceiros, e a impossibilidade de sair de casa aos finais de semana. O que ele fez e o que aconteceu? Burlou a decisão, como se não houvesse proibições.
O corriqueiro —e que provavelmente seria chancelado por qualquer tribunal do país— seria a imposição de prisão preventiva a Bolsonaro. Na "letra da lei", seria isso. Aliás, há dezenas de milhares de "não bolsonaros" presos sem o mesmo benefício de prisão domiciliar. No caso, Moraes foi brando, expandindo as hipóteses de cabimento de prisão domiciliar, nas quais, olhando bem os artigos 317 e 318 e 319 do Código de Processo Penal, a situação de Jair nem se encaixa.
Mas parece que isso não tem importância. Desde 1889 já passamos por 14 golpes e tentativas de golpes. O desejo de uma 15ª vez está em marcha. Inclusive, o Parlamento dá mostras, sabotando o início dos trabalhos, com nítida chantagem cujo preço é a anistia.
Alguém duvida que a democracia esteja sob ataque interno e externo? Os insurrectos querem, em nome do direito, burlá-lo. Ora, direito de defesa não é direito de golpear as instituições. Metaforicamente: liberdade não é poder esbofetear o juiz, como fez o filho de Henrique 4º, na peça de Shakespeare. Só que, ali, o juiz prendeu o filho do rei.
A situação é grave. Em nome da democracia não dá para promover a sua extinção. Nenhuma democracia comete haraquiri. Com seus atos, os Bolsonaros querem se beneficiar da própria torpeza, colocando a culpa na vítima. Aliás, querem acabar com a vítima.
Aí, não dá.
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