Naquela manhã cinzenta, acordei com a estranha sensação de que o tempo havia se recolhido. O relógio não marcava horas — ele meditava. As paredes da casa pareciam mais espessas, como se feitas de papel de arroz filosófico, e as estantes ganhavam vida, cochichando entre si como velhos mestres em sussurros socráticos. Era o dia em que todos os livros de filosofia resolveram conversar entre si. A República de Platão desceu soberana de sua prateleira dourada. Sentou-se sobre a mesa como quem se prepara para julgar a alma do leitor. “A justiça é a harmonia entre as partes da alma”, disse ela, com ares de professor helênico. A seu lado, Ética a Nicômaco, mais serena, ponderava: “Não basta a harmonia, é preciso agir conforme a virtude, em ato e potência”. Nisso, o tombo sonoro de Crítica da Razão Pura que se espatifava no chão como uma tese mal formulada. Kant, sempre pontual e metódico, não tolerava atrasos nem devaneios. “Ordem, senhores! Sem condições de possibilidade, nenhuma experiência é possível! A razão deve traçar os limites de si mesma!” Todos se calaram — menos Nietzsche. Assim Falou Zaratustra dançava sobre a cadeira, completamente nu de ilusões, proclamando: “Deus está morto! E fomos nós que o matamos com nossos tratados!” Platão se remexeu. Aristóteles pigarreou. Kant revirou os olhos com desprezo prussiano. Mas A Vontade de Potência, ali ao lado, completava a dança com um sorriso debochado, como quem diz: “Ele tem razão... mas só até certo ponto.” Foi então que entrou Ser e Tempo, de Heidegger, arrastando os chinelos como um velho fantasma germânico. Sentou-se em silêncio, olhando para todos com o peso de mil séculos. “O ser não é. Ele se mostra no tempo. E é na angústia que nos damos conta de que existimos.” Nietzsche acenou com o cálice. Sartre, por sua vez, soltou uma baforada imaginária de cigarro e resmungou com ares de existencialista parisiense: “A existência precede a essência. O inferno são os outros — mas ao menos servem vinho.” O Ser e o Nada ocupou a poltrona mais funda da sala, aquela onde os amantes se perdem em madrugadas solitárias. Olhou para mim, como se me reconhecesse. “Você ainda acredita que é livre? Ou já entendeu que está condenado à liberdade?” As luzes piscavam. Lá fora, Foucault batia na janela com sua capa de arquivista revolucionário. Trazia consigo Vigiar e Punir como se fosse um prontuário secular da humanidade. “A alma não é um dom, é uma invenção do poder. Cuidado com quem te observa — às vezes é você mesmo.” Entrei em pânico. Corri para o espelho: não vi nada. Nesse instante, O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir desceu com fúria e lucidez, rasgando as cortinas da sala com um único gesto. “Não se nasce mulher, torna-se mulher. E o mesmo vale para qualquer identidade que se queira verdadeira. Vocês todos, filósofos, têm falado demais e escutado de menos.” A sala silenciou. Platão tentou argumentar, mas foi interrompido por um olhar glacial. Por fim, entrou David Hume com um sorriso cético e gentil. Carregava Investigação sobre o Entendimento Humano debaixo do braço e uma taça de vinho tinto. “Não confiem tanto na razão. Acreditamos mais por hábito do que por certeza. No fundo, estamos todos apostando em nossas crenças como quem aposta nos dados.” Nietzsche brindou. Sartre assentiu. Beauvoir ergueu sua taça. E eu? Eu acordei. Estava na minha poltrona, com um desses livros nas mãos. As páginas ainda tremiam. O café esfriava. Mas lá fora, o tempo voltava a andar — como se tudo aquilo tivesse sido um sonho ou, quem sabe, um lampejo de verdade. Fechei os olhos. Ainda sentia o perfume de Foucault, o hálito de Sartre, o gesto brusco de Simone, o olhar sombrio de Heidegger. E pensei: talvez a filosofia não sirva para responder, mas para tornar a existência uma pergunta eterna — feita de carne, espanto e desejo. A estante sussurrou de novo. Desta vez, em silêncio.
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