terça-feira, 12 de agosto de 2025

Wilson Gomes - A crença na 'ditadura de toga', arma política do Bolsonarismo, FSP

 Conheço ao menos uma pessoa que considera um "ato de justiça" ver Alexandre de Moraes enforcado em praça pública. Quem estava ao redor, quando ela fez a declaração em alto e bom som, descontou o exagero retórico, mas concordou com a essência.

Não se trata apenas de Moraes, mas, no limite, de todo o Poder Judiciário e até do Ministério Público. Alexandre funciona, nesse enredo, como síntese e personificação —útil para fins narrativos e para organizar o ódio coletivo— da convicção de que certas pessoas e instituições existem para destruir "o nosso lado", a direita bolsonarista.

Também conheço muitos que defendem o impeachment do magistrado. Alguns apenas afirmam que, cedo ou tarde, isso ocorrerá; outros sustentam que a medida deveria ser tomada já, no auge da convulsão política. Estes últimos estão convencidos de que a entrega da cabeça de Moraes seria o único sacrifício capaz de aplacar a suposta "justa fúria" de Trump contra o Brasil.

Por trás disso está a convicção, amplamente partilhada por uma parcela expressiva dos brasileiros, de que vivemos sob uma "ditadura de toga". No universo bolsonarista, não é tese nem hipótese, mas fato evidente —só não vê quem está dominado pelo outro lado.

Não deveria ser necessário dizer, mas, por mais severas que sejam as críticas a decisões polêmicas do STF, os elementos essenciais de uma ditadura não se verificam. Conheço ditaduras, vivi numa delas as duas primeiras décadas da minha vida. Hoje, mesmo as decisões mais contestadas foram tomadas dentro de um marco institucional reconhecido pela Constituição, aprovadas por colegiado e passíveis de revisão. Não houve suspensão de garantias constitucionais, supressão sistemática do Legislativo ou do Executivo nem ausência de freios e contrapesos.

Ora, se a percepção não corresponde aos fatos, por que a crença resiste? Vamos às hipóteses.

A ideia de "ditadura de toga" cumpre função psicológica e identitária: oferece um enquadramento simples, moralmente carregado e útil para mobilização política. O núcleo factual —decisões polêmicas e ativismo judicial— é apenas o ponto de partida; a narrativa se sustenta pela predisposição a ver o mundo em termos maniqueístas, a desconfiar de elites institucionais e a buscar alvos claros para frustrações difusas.

A ilustração de Ariel Severino em estilo de recorte de papel mostra duas marionetes se encarando sobre um palco de cortinas azuis e adereços dourados no topo. À esquerda, uma das marionetes, vestindo camiseta, bermudas e luvas de box, segura um celular e está rodeado por ícones amarelos de “curtir”, representando o apoio da extrema direita. À direita, outra marionete, de rosto hostil, empunha um grande taco de madeira e está cercado por ícones verdes de “não curtir” também da mesma galera. Veste toga, camisa e gravata. A cena sugere um embate simbólico no contexto político-judicial deste país, onde só se contabiliza em “likes” de quem domina a redes sociais.
Ariel Severino/Folhapress

A crença é funcional: insucessos eleitorais, investigações contra lideranças e derrotas legislativas encontram no "STF ditatorial" um inimigo externo e personalizado. Atribuir-lhe todo o peso da frustração preserva a autoestima do grupo e a imagem positiva da liderança. É também um mecanismo de projeção, já que defeitos e fracassos atribuídos ao próprio campo são percebidos como agressões externas. Não há necessidade de assumir responsabilidade por eles.

Além disso, encaixa-se perfeitamente na simplificação moral da política, reduzida à luta entre um povo inocente e virtuoso (os "patriotas") e seu líder abnegado, de um lado, e um vilão centralizado e onipotente (o STF), de outro. Essa divisão atende à necessidade de organizar o mundo em categorias rígidas de certo/errado, amigo/inimigo —algo típico de estruturas de personalidade menos tolerantes à ambiguidade.

Tais narrativas convertem predisposições latentes —hostilidade a limites institucionais, desconfiança de instituições pluralistas, necessidade de autoridade forte, rejeição de controle judicial sobre líderes carismáticos— em ação política: manifestações, discursos violentos e ataques à legitimidade judicial. Grupos que partilham essas predisposições tendem a interpretar decisões judiciais contrárias ao seu campo político como prova da existência de uma "ditadura".

A adesão à tese também opera como marcador de pertencimento: quem a repete e defende se identifica como parte do grupo e demonstra lealdade; discordar dela implica risco de exclusão simbólica, reforçando a uniformidade interna. À medida que a tese ganha adesão, desaparecem as posições moderadas e as concessões; quanto mais radical for a posição manifestada ("enforquem-no!"), maiores as cotas de estima oferecidas pelo grupo.

Por fim, se o Judiciário é visto como ditatorial, medidas fora da normalidade democrática —da desobediência civil aos ataques à credibilidade judicial, dos apelos por intervenção estrangeira até propostas abertas de golpe de Estado— passam a ser tratadas como atos legítimos. Esse é o perigo maior: a crença não apenas reorganiza a realidade para caber no enredo que o grupo já abraçou como fabrica a licença moral para romper com a democracia sob o pretexto de salvá-la.

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