quarta-feira, 6 de agosto de 2025

A CARTA DE TRUMP , Alexandre Marcos Pereira, in APMP

 A carta de Trump a Lula, datada de 9 de julho de 2025, deveria fazer o planeta se lembrar de um antigo axioma diplomático: cartas abertas raramente pretendem convencer o destinatário; miram, antes, o tribunal da opinião pública — um palco onde cada palavra é espada e chicote ao mesmo tempo. Quando Trump ergue o dedo acusatório, podemos contar que o gesto, como no quadro “Las Meninas”, de Velázquez, devolve ao espectador seu próprio reflexo. A “desgraça internacional” torna-se, no fundo, um retrato invertido das turbulências que atravessam tanto o trumpismo quanto o bolsonarismo: a recusa em aceitar regras de jogo que não lhes sejam favoráveis, o flerte constante com teorias conspiratórias, o apego ao espetáculo como forma de retórica. Lembro-me de um aforismo de Karl Kraus, o satirista vienense: “A imprensa foi inventada para que mentiras parecessem verdades”. Se Kraus vivesse hoje, trocaria talvez a palavra “imprensa” por “rede”, e constataria que a carta de Trump é um “post” avant la lettre: contém menos diplomacia e mais algoritmo, menos Estado e mais “engajamento”. Mas por que o Brasil? Porque nossa história republicana tem uma estranha vocação para o inacabado. Deodoro proclamou a República sob o sol de novembro como quem acorda mal-humorado de uma sesta; oscilamos entre utopias messiânicas e soluções de quartel. Ao mencionar Bolsonaro como “líder altamente respeitado”, Trump apela à velha lisonja de espelhos rachados, ignorando que “respeito” não é sinônimo de “ruído”. Há, porém, uma lucidez involuntária na frase trumpiana. O tratamento dado a Bolsonaro — investigações, processos, CPI, manchetes — reflete uma nação que ainda tenta aprender que a liturgia democrática não é mero ornamento, mas disciplina. E disciplina, adverte Montaigne, é o mais amargo dos elixires: cura sem prometer doçura. Na mesma missiva, dizem os confidentes de Washington, havia elogios a Bolsonaro que fariam corar um florista barroco, um ramalhete digno de Vianna Moog comentando O Puxador de Ferro. Trump sabe que o superlativo é o açúcar que adoça a pílula: quanto mais estridente o louvor, mais fácil ocultar a falta de substância. Lula, que nunca desperdiça metáfora, poderia ter respondido com sete palavras cortantes: “Caro presidente, respeito opiniões, mas defendo instituições.” As frases concisas costumam prolongar-se nos corredores da política até se tornarem fábulas. No fundo, a carta serve de prelúdio a uma ópera maior: a sinfonia dos ressentimentos contemporâneos. Trump e Bolsonaro trocaram elogios como troféus, convencidos de que vitimização rende mais votos que vitória. É a pedagogia do ultraje — técnica descrita por Umberto Eco quando analisava os fascismos eternos: criar inimigos internos e externos, teatralizar a ameaça, prometer redenção. Entretanto, toda ópera precisa de terceiro ato. No libreto do século XXI, esse ato se chama “juridicização”: CPIs, órgãos de controle, Supremo Tribunal, imprensa internacional, tribunais de Haia. Não é à toa que a carta denuncia “desgraça internacional”; onde há investigação, há espanto, e onde há espanto, há manchetes que viajam sem visto. Há quem veja nessas trocas epistolares apenas fofoca diplomática. Mas a crônica — gênero que transita entre o grão de poeira e a galáxia — serve para lembrar que a história é tecida também por bilhetes mal pontuados e travessões mal colocados. Se, no fim, a carta for esquecida, restará a lição: ruídos podem ser combatidos com mais fala, não com mordaça. A liberdade de expressão é esse fio tenso que nos permite caminhar sobre o abismo sem despencar no silêncio. Trump, ao brandir a própria voz, confirma (embora não perceba) que só numa ágora barulhenta alguém como ele poderia berrar contra o vento. Que continuemos, pois, a zelar por essa ágora — ainda que precise, às vezes, de tapumes e varrições. E quando o próximo líder estrangeiro escrever a Lula — ou a qualquer outro — teremos pelo menos a ventura de ler, rir, refutar, aplaudir ou ignorar. Porque, parafraseando Machado de Assis, não há enigma maior que o da palavra livre, nem cadeia mais sombria que a da censura. Ficamos combinados assim: se cartas abertas são espelhos, que cada qual se contemple à luz do dia. 

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