A digitalização é apontada como um dos pilares da transição energética. Mas, afinal, medidores inteligentes bastam para tornar redes e serviços inteligentes? Exploro o tema nesse artigo respondendo a um conjunto de perguntas: digitalizar para quê, para quem e a que custo?
O futuro que parecia ficção na "casa dos Jetsons" já começa a entrar na vida real dos moradores da Grande São Paulo. Depois da Enel-SP iniciar a instalação de medidores inteligentes de eletricidade, agora a Sabesp anuncia planos ambiciosos de adotar a tecnologia na água. Passos ainda lentos, mas que revelam um movimento maior: o Ministério de Minas e Energia publicou neste ano a Portaria 111, que define diretrizes para a digitalização das redes de distribuição. O ministro Alexandre Silveira tem pressa. Pediu às distribuidoras que apresentem suas avaliações e planos, boa oportunidade em um momento em que avança a prorrogação de contratos de concessão.
A pergunta é: como garantir que também o consumidor se beneficie dessa onda digital? No país, menos de 5% dos 90 milhões de medidores são inteligentes. Três lições internacionais —e um estudo recente desenvolvido no Brasil— ajudam a iluminar o caminho.
Lição 1
Não é para todos, pelo menos não agora. Planos universais soam inclusivos, mas ignoram realidades distintas. Não faz sentido tratar do mesmo modo o centro de uma metrópole como São Paulo e uma pequena cidade do interior. E mais: a experiência italiana mostra que digitalização deve ser faseada no tempo e no espaço.
A Enel foi pioneira com o programa Telegestore, implantado entre 2001 e 2006, que substituiu 30 milhões de medidores analógicos por digitais. Anos depois, iniciou uma segunda geração (Telegestore 2G), mais sofisticada e com maior interação com os consumidores. A interação com o regulador foi importante para decidir a nova configuração, que se preocupa mais com os benefícios para usuários.
Na Europa, a digitalização já percorreu um longo caminho. Cerca de 63% das residências possuem medidores inteligentes, e a expectativa é que esse índice chegue a 78% até 2028. Países como Espanha, Suécia e Finlândia praticamente concluíram a substituição, atingindo cobertura próxima a 100%. Isso mostra que o avanço tecnológico é possível —mas também reforça a lição de que a verdadeira inteligência da rede não vem apenas do equipamento em si, e sim de regulação adequada, desenho tarifário e integração entre diferentes utilities.
Lição 2
Não é tudo igual. Avaliar custo e benefício é essencial. Protocolos europeus de CBA (Cost-Benefit Analysis) mostram que os ganhos podem ir desde redução de custos operacionais (leitura manual dispensada, corte e religação remotos) até vantagens diretas para o consumidor, que pode ajustar seu consumo em função do preço da energia. Mas isso só funciona se o preço refletir a dinâmica do sistema — mais caro no fim da tarde, mais barato num dia ensolarado – o que por aqui ainda não é realidade. Aqui o quadro é outro: a tarifa é a mesma independente da hora do dia para mais de 80 milhões de consumidores – mais de 90% do mercado cativo das distribuidoras.
Estudo aplicado à realidade paulista confirmou esse ponto: os benefícios existem, mas variam conforme a regulação, o desenho tarifário e o engajamento dos usuários. Sem incentivos adequados, boa parte do ganho estimado pode simplesmente se perder. Mas o custo, fica.
Lição 3
Não resolve tudo. Medidores inteligentes não são bala de prata. Experiências em países como Reino Unido e EUA mostram que na prática as expectativas nem sempre se confirmam. Estudos de Brandon e coautores revelam que, mesmo com informação em mãos, quando bate o calor ou o frio, consumidores cedem ao desconforto e reprogramam termostatos, anulando ganhos de eficiência. John List, ao avaliar programas em Michigan, concluiu que não houve impacto significativo sobre o consumo de eletricidade ou gás. A lição é clara: reguladores não devem se apoiar apenas em estimativas de engenharia —comportamento humano importa, e muito.
E não é só na energia. A Sabesp, junto com a Vivo, já planeja medidores inteligentes de água. Isso reforça um ponto: sem convergência e interoperabilidade, corremos o risco de multiplicar equipamentos em cada casa e repassar ao consumidor uma conta ainda maior.
Na casa dos Jetsons, as máquinas eram cheias de promessa, mas viviam falhando. Para evitar esse destino em 2062, precisamos lembrar que a inteligência não está no medidor isolado, mas na do sistema que o conecta.
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