Um tema sempre surge na plateia quando falo de experimentos clínicos com psicodélicos ao apresentar os livros "Psiconautas" (2021) e "A Ciência Encantada de Jurema" (2025): as pesquisas não avançam porque a grande indústria farmacêutica –a famigerada Big Pharma– trabalha contra, ou pelo menos não investe, nessa inovação para saúde mental, tão promissora quanto estigmatizada.
Em contraste, alguns grupos indígenas parecem convencidos de que grandes laboratórios e pesquisadores já ganham fortunas com substâncias como a dimetiltriptamina (DMT) da ayahuasca, também conhecida como daime, e da jurema-preta. A desconfiança vem ganhando espaço em encontros como o 1º Seminário de Medicinas Ancestrais: Jurema e a 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca.
Não é bem assim. Uma das poucas farmacêuticas de grande porte investindo em psicodélicos, e de modo discreto, é a japonesa Otsuka Pharmaceuticals. Ela adquiriu uma pequena empresa canadense fundada em 2019, Mindset Pharma, e firmou acordo com a Universidade Keio para pesquisas básicas (e não clínicas) com essas substâncias.
Semana passada, a Bloomberg noticiou que o laboratório AbbVie está para fechar a aquisição da Gilgamesh, empresa desenvolvedora de medicamentos psicodélicos que teria seu valor alçado a cerca de US$ 1 bilhão (R$ 5,5 bilhões) na transação. A AbbVie nasceu da farmacêutica Abbott e faturou mais de US$ 56,3 bilhões (mais de R$ 310 bilhões) em 2024. Pode ser o início do embarque da Big Pharma.
Houve sim, nos últimos anos, um fluxo de investimentos direcionado a compostos alteradores da consciência em estudo para tratar transtornos como depressão, estresse pós-traumático e dependência química. Mas são em geral startups como a Mindset, muitas delas desde então vitimadas pela mortalidade natural nos voláteis investimentos de risco.
Um conglomerado que se destaca no campo é a atai Life Sciences, do investidor Christian Angermayer. A holding pôs dinheiro em empresas como a Compass Pathways e a Beckley Psytech, cujas ações observaram altas da ordem de 10% após a reportagem da Bloomberg.
Angermayer usa o exemplo do spray intranasal para depressão Spravato (variante do anestésico dissociativo cetamina) para projetar o potencial de mercado dos psicodélicos. O remédio da Jannsen tem vendas anuais projetadas em US$ 3 bilhões (R$ 16,5 bilhões) e vem sendo usado por psiquiatras –inclusive no Brasil– para tratar deprimidos graves, em especial aqueles com ideações suicidas.
Um dos produtos no duto P&D da atai é o VLS-1, um antidepressivo veiculado por meio de filme bucal, em formulação patenteada. Seu princípio ativo é a boa e velha DMT da ayahuasca e da jurema-preta.
Ao ser absorvida pela mucosa da boca a droga evita o trato digestivo, onde seria degradada. Com isso, induz um efeito psicodélico curto, de cerca de uma hora, bem mais manejável em clínicas do que as várias horas viajando "na força" de beberagens como o daime e o vinho da jurema.
Ayahuasqueiros e juremeiros, portanto, têm alguma razão em seus temores, embora não caiba falar ainda de lucros com tais substâncias sagradas. Como a DMT é composto natural produzido por vários animais e plantas, presente até em pequena quantidade no cérebro humano, torna-se duvidoso que possa ser patenteada –mas também mais difícil argumentar que povos originários tenham precedência sobre ela.
Combater propriedade intelectual, mesmo patentes questionáveis, e dificultar pesquisas pode não ser a melhor estratégia para detentores dos conhecimentos tradicionais que, na origem, deram pistas de substâncias alteradoras da consciência com potencial terapêutico. Exigir reconhecimento, reparação e participação em eventuais lucros são outros 500.
Eis aí um bom tema para discussão do Fórum Mundial da Ayahuasca que povos indígenas e pesquisadores realizarão de 9 a 13 de setembro de 2026 na cidade de Girona, Espanha.
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