Primeira e única mulher a ocupar uma das cadeiras no STM (Superior Tribunal Militar) na história, Maria Elizabeth Rocha quase viu o tribunal mudar uma tradição bicentenária para impedir que a ministra assumisse a presidência da corte.
A eleição é um ato formal que confirma um acordo tradicional no tribunal militar. A cada dois anos, a presidência é transferida entre as categorias representadas (Marinha, Exército, Aeronáutica e civis). Assume o mais antigo entre os togados.
Na hora e na vez de Elizabeth, o ministro Péricles de Queiroz decidiu apresentar sua candidatura, num movimento atípico. Os votos foram colhidos, em secreto, na urna do STM na última quinta-feira (5). Na disputa mais acirrada do tribunal militar desde o fim da ditadura militar, venceu a ministra por 8 votos a 7.
"Foi doloroso, não vou negar", diz Maria Elizabeth em entrevista à Folha.
Ela afirmou que os direitos das mulheres "não são dados, eles são arrancados a ‘fórceps’".
Essa será a segunda gestão de Elizabeth à frente do STM. Na primeira vez, em 2014, ela assumiu um mandato tampão. Desta vez, ela pretende conseguir lugar para a Justiça Militar no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e incluir a Lei Maria da Penha no Código Penal Militar.
O atual presidente do STM, ministro Joseli Parente, diz que apesar da tradição, não há uma regra que determine quem comandará o tribunal e que não houve "nada de anormal" na eleição interna.
Qual marca a sra. quer deixar na sua segunda passagem pela presidência do STM?
Antes de qualquer coisa, eu quero aprovar a PEC que inclui a Justiça Militar da União no Conselho Nacional de Justiça. Quando a emenda 45 reformou o Poder Judiciário, olvidou o assento que era devido à Justiça Militar. Nós nos submetemos às resoluções do CNJ, nós acatamos os protocolos, as recomendações. Não é justo que nós não tenhamos voz junto a um órgão tão relevante que é o órgão de controle do Poder Judiciário.
É importante também atualizar o nosso Código de Processo Penal, que é de 1969. Ficaram leis, tipos penais anacrônicos dentro da nossa legislação e que merecem ser expurgados de lá. Até para defender as minorias, defender as mulheres. Com a maior integração feminina nas Forças Armadas, agora há crimes que não eram comuns, como assédio sexual, assédio moral. Nós precisamos ter um olhar diferenciado para esses crimes.
Há outras questões ligadas às mulheres que merecem atualização no Código Penal Militar?
Não é apenas a hierarquia e a disciplina militar que nós temos que salvaguardar. Existem outros valores, como a integridade da mulher, como a questão do racismo, como a transfobia, que nós temos que combater.
Por exemplo, nós não podemos aplicar a Lei Maria da Penha. Houve, infelizmente, um veto do presidente da República [Lula], quando foi alterado o Código Penal Militar, que dizia que a violência doméstica não era crime militar, mesmo se a mulher e o agressor forem militares.
Como é possível, por exemplo, nós darmos medidas protetivas para a mulher vitimizada? Sem adentrarmos a competência de um foro que não é o nosso, que é o foro cível, sob pena de nulidade absoluta do julgado. A mulher militar acaba sendo revitimizada institucionalmente, porque a lei autoriza que, nesses casos de violência, a corte militar não seja o órgão julgador competente.
Parecem pautas progressistas para o principal tribunal militar.
É o que eu pretendo. Uma gestão mais progressista, uma gestão que privilegie a diferença, a questão dos gêneros humanos que são tão diversos e tão variados e que tem que ser acolhidos e protegidos pelo Estado.
Eu acho que se uma lição ficou de tudo isso que nós estamos vivendo, é que tanto as Constituições quanto o Estado democrático são projetos inacabados. Nós temos que permanentemente construir a Constituição e a democracia. São projetos para gerações futuras.
O STM é historicamente punitivista para o militar pego com drogas e garantista para casos de homicídio, como no caso de Guadalupe [onde duas pessoas foram mortas por militares, no Rio, em 2019]. Como a sra. vê esse dilema?
Buscamos a razoabilidade e a proporcionalidade dos julgados. Eu, como todos sabem, sou voto contramajoritário da corte, porque talvez eu seja a única do meu gênero, tenha uma visão diferenciada de mundo. É preciso haver uma sensibilização dos nossos colegas, dos nossos pares, para se punir aquilo que verdadeiramente merece punição.
A sra. foi eleita por um voto, em uma disputa atípica e acirrada. Como foi esse processo?
Foi doloroso, não vou negar. Foi por um voto de diferença, o meu voto. A questão é que a antiguidade sempre foi uma regra consolidada que prevalece em todos os tribunais do país. Eu atribuo a resistência a duas questões primordiais.
A primeira, a sociedade brasileira está dividida e eu represento um lado mais progressista, um lado que defende certas garantias e direitos que não são muito bem vistos pelo outro lado. E o fato também de eu ser uma mulher.
Eu costumo dizer que quebrei o teto de vidro. Eu votei em mim, mas todas as magistradas estavam comigo naquele meu voto. E o que eu posso dizer é que os estilhaços não caíram em cima de mim —caíram em cima de uma sociedade patriarcal, de uma sociedade sexista, que confina seres humanos em lugares pré-determinados.
Eu sou uma feminista, e a sociedade é patriarcal. Os nossos direitos não são dados, eles são arrancados a "fórceps". Eles são retirados, com muita luta e com muita conquista por parte daqueles que são segregados. Por isso, essa situação não me surpreende.
Qual avaliação a senhora faz das escolhas de Lula para os tribunais superiores, com redução de mulheres no STF?
Eu vejo com bastante tristeza, foi uma promessa de campanha. Nós acreditamos nela e continuamos a acreditar. Existem agora duas vagas a serem preenchidas no STJ [Superior Tribunal de Justiça], duas mulheres vão se aposentar. Vai haver uma nova vaga para o meu tribunal. Eu espero, sinceramente, que essa promessa de campanha, que é tão cara a todas nós, à sociedade democrática, seja efetivamente levada a cabo.
Os militares investigados pelo 8 de janeiro e a trama golpista não estão sendo julgados pelo STM. Há uma sensação de impunidade na Justiça Militar.
Todos os casos ligados ao 8 de janeiro estão sob responsabilidade do ministro Alexandre de Moraes, por prevenção. Ele foi o primeiro a julgar os suspeitos de atentar contra a democracia. Isso é natural, é o processo normal.
O STM vai julgar os possíveis condenados pela indignidade do oficialato. Se alguém for condenado a mais de dois anos, transitado em julgado, o processo vem até a Justiça Militar e então nós vamos julgá-los.
É o que nos cabe nesse caso. Não há impunidade de nossa parte.
Raio-X | Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, 64
Foi indicada por Lula para vaga no STM em 2007. É doutora em direito constitucional pela UFMG. Atuou como procuradora federal, assessora jurídica da Câmara dos Deputados, do TSE e da Casa Civil da Presidência da República. É professora titular do UniCeub, em Brasília, e professora visitante da Universidade de Buenos Aires e da Universidade Javeriana, em Bogotá, na Colômbia.
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