quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Cantiga de Esponsais, de Machado de Assis


Fonte:

ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.

Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>

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CANTIGA DE ESPONSAIS

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas

festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma

missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não

lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos

das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras

graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da

orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse

velho que rege a orquestra, com alma e devoção.

Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por

esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é

o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele

tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão" — equivalia a esta outra forma de anúncio,

anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; — ou então: "O ator Martinho cantará

uma de suas melhores árias." Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre

Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos

no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a

vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso

iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora

no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a

missa fosse sua.

Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas

alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia

beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado.

Jantou, saiu, caminhou para a rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho,

pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.

— Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha.

— Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.

Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava

com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o

menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem

cores vivas ou jocundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre

Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de

música; nenhuma dele...

Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas

sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as

últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um

modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da

música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e

originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única da tristeza de

mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo:

doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: — a causa da

melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que

sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas

tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da

vizinhança, e não tentava mais nada.

E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício,

começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos,

e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática,

e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si

alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo;

mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por

transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração

do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas

chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia

seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu,

ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar

no papel a sensação de felicidade extinta.

— Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado.

— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...

— Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica...

O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre

Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: — moléstia grave

e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem

ao repouso, e quis chamar o médico.

— Para quê? disse o mestre. Isto passa.

O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal

pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo

de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não

era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha,

para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão, — outro que eram amores.

Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.

— Está acabado, pensava ele.

Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso

o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras: — Isto não é nada; é

preciso não pensar em músicas...

Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento.

Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto

esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E então teve

uma idéia singular: — rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma

vez que deixasse um pouco de alma na terra.

— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...

O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar,

era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a

sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos

fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos

ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.

— Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles

poderão tocar...

Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao lá....

— Lá, lá, lá...

Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.

— Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...

Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas

enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava

ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se

da mulher, dos primeiros tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para

o lado dos casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos

ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo.

Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do

casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.

— Lá... lá... lá...

Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a

moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma

coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda

frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O

mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.

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