terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Nada para nós sem nós, Jerson Kelman, FSP

 Gelei quando a simpática senhora que nos servia café se voltou para um sujeito a quem ela chamava de "prefeito", que intuí fosse o "dono" da comunidade, e disse jocosamente: "Em vez de lhe pagar mensalmente R$ 50 pela água, vou pagar R$ 15 para a Sabesp". Para meu alívio, o "prefeito" reagiu serenamente.

Receava que a implantação do Programa Água Legal contrariasse o crime organizado devido à perda de receita com a venda de água furtada da própria Sabesp. Água que chegava às casas dos moradores por tubos improvisados, com muitos vazamentos. Felizmente esse "serviço" não constituía fonte de receita relevante para o tráfico de drogas. Por isso não houve oposição à substituição do caótico sistema por um outro, muito mais eficaz. A Sabesp delegou a construção e a operação do novo sistema a uma empresa terceirizada, que aceitou contratar mão de obra local e condicionou o lucro à redução das perdas de água.

No caso de áreas conflagradas do Rio, a regularização será bem mais difícil. Rodrigo Pimentel, ex-capitão da Polícia Militar do Rio, cujas experiências moldaram o personagem Capitão Nascimento, do filme "Tropa de Elite", disse num evento organizado pela Light (31/10) que a venda de drogas é hoje componente menor na receita dos grupos armados. A exploração das próprias comunidades e o cometimento de outros crimes facilitados pelo domínio do território passaram a ser mais relevantes.

As famílias que vivem nessas comunidades são exploradas. Por exemplo, são forçadas a comprar botijão de gás por R$ 140, quando o preço de mercado é R$ 100. Pagam também um valor mensal pelas utilidades furtadas das concessionárias de serviço público (água, eletricidade e internet)

Poste com 'gatos' de energia elétrica em comunidade da zona norte do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli - 17.mai.23/Folhapress

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O consumo per capita é em geral maior do que em áreas regulares porque: 1) a urbanização é caótica, com precária ventilação entre as habitações, o que induz ao uso de muita eletricidade em aparelhos de ar-condicionado; 2) há muito desperdício (o valor cobrado não varia com o volume); 3) o furto de água, energia elétrica e internet é culturalmente aceito por uma população que não respeita as regras porque não se sente respeitada.

Sob a ótica das concessionárias, há uma dupla perda: a receita não aferida e o custo de produzir utilidades para serem desperdiçadas. O que fazer? Arrisco dois palpites.

Primeiro, atuar na dimensão econômica. No caso da eletricidade, o recente decreto sobre renovação de contratos de distribuição permite que as tarifas sejam diferenciadas nas áreas em que o combate ao furto de energia e à inadimplência seja muito complexo. É uma oportunidade para reconhecer, por exemplo, que o consumo em habitações onde moram muitas pessoas tende a ser maior do que onde moram poucas.

Segundo, atuar na dimensão social. Na Índia, mulheres das comunidades foram mobilizadas para atuar como agentes de regularização dos serviços. Aqui, faria sentido imitar a experiência e remunerar as mulheres proporcionalmente ao custo do desperdício evitado.

São ideias concebidas a distância por quem se preocupa tanto com os problemas locais quanto com a sustentabilidade global. Para serem validadas, seria preciso ouvir as próprias comunidades. Nas palavras de um ativista social, "nada para nós sem nós".

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