Durante a entrevista para a Folha, Clóvis de Barros Filho, 58, olhava para baixo. Mas não era tristeza. Há dois anos, o professor e filósofo foi diagnosticado com a doença de Behçet, uma condição que causa fragilidade do sistema imunológico, propiciando aftas e inflamações, em especial nos olhos. A doença é autoimune, rara, sem cura e pode levá-lo à morte.
Por isso, ele evita olhar a luminosidade que entra pela janela do escritório onde trabalha, em Higienópolis, na região central de São Paulo. Na rua, aderiu aos óculos escuros. Nos consultórios médicos, foi submetido a um tratamento com imunossupressores, medicamentos manipulados e anti-inflamatórios contra os sintomas.
Segundo a SBR (Sociedade Brasileira de Reumatologia), a doença de Behçet foi descrita nos anos 1930 pelo médico turco de mesmo nome que a detectou na Ásia e no Mediterrâneo. A causa é desconhecida pela ciência e o diagnóstico não costuma ser simples, e foi ainda mais surpreendente por ter uma incidência maior entre asiáticos.
"Achei que a inflamação nos olhos era alergia à tinta de jornal. Depois, a pólen de flor. Sempre achei que as aftas na boca decorriam de abacaxi. Coisas sempre triviais", diz Clóvis.
O diagnóstico foi dado por uma biópsia, recomendada por uma amiga médica. Desde então, passa por reumatologistas e toda uma parafernália de exames. Uma situação que diz ser necessária para que a fragilidade crônica não agrave o atual quadro de saúde.
Com a medicação, o apetite diminuiu e ele perdeu peso para conter os índices glicêmicos e o colesterol. A sonolência aumentou. Mas a agenda quase diária, por outro lado, continua a mesma: voos pelo Brasil para participar de palestras, gravação de podcasts, escrita de livros. Todo esforço físico tornou-se calculado. "O resto do tempo é de recuperação", diz.
Clóvis defende duas formas de encarar uma situação como a dele: viver o momento. A outra, se desapegar. O desapego que tem praticado é em relação às expectativas alheias e também sobre os planos próprios almejados para o futuro.
"Todo mundo com dois neurônios sabe que pode morrer a qualquer momento, mas com uma doença em nível muito elevado, como é meu caso, essa possibilidade de deixar de existir integra a vida de maneira muito mais diária", diz.
"Naturalmente, nessa minha nova condição, não faz muito sentido eu orquestrar a vida do presente para desfrutar daqui a 20 anos", diz.
No passado, Clóvis seguiu as etapas que lhe eram esperadas como professor: mestrado, doutorado, pós-doutorado, artigos, conchavos acadêmicos, títulos, discursos em formaturas.
Desde que se afastou das salas de aula, onde lecionou na USP (Universidade de São Paulo), se arrisca na carreira solo como comunicador. Foi uma decisão imprevisível, mas também calculada.
No início deste semestre, deu continuidade à trajetória como comunicador com o livro "Projeto de Vida: caminhos para uma vida que valha a pena" (Citadel Grupo Editorial), uma provocação às obras de autoajuda para "ajudar a pensar melhor a vida e, quem sabe, tomar decisões mais auspiciosas", diz.
Então, usando um pouco da lucidez, eu passo a focar o dia no próprio dia e realmente comemoro cada dia suplementar
O tratamento o ajudou a divulgar a obra e a dar entrevistas. Fisicamente, diz que quem o vê pode achá-lo como vivendo uma "vida normal". Filosoficamente, também diz que a doença pouco mudou a interpretação ambígua mantida sobre a vida, com suas boas e más notícias.
"O mundo é infinitamente criativo e competente para devastar, aniquilar, entristecer, mas também sempre soube que a vida, esse pântano de paixões tristes, é salpicada de gotas de alegria, de exuberância vital. É encantadora", diz. Por isso, não se diz entristecido. Nem com medo.
"Sempre procurei chamar atenção para pensamentos que enfatizam a imediatidade da vida, a necessidade de trazer a consciência para o instante vivido", diz. "A principal mudança é a redução da relevância do futuro."
Assim, a preocupação em manter e agradar os seguidores nas redes sociais o preocupa muito menos do que antes. As etapas seguidas na carreira acadêmica —que chama de "pedágios"— também se tornaram menos determinantes. Isso o permitiu a se conhecer com mais autenticidade.
"Vejo a angústia como uma oportunidade, diria, necessária, para o pleno conhecimento de si. Posso ver até aonde vai minha coragem, até aonde vai a minha covardia, até aonde vai meu desejo de viver autenticamente, até aonde estou disposto a negociar a ser um mero joguete das forças da natureza e das forças sociais", acrescenta.
"Ora, a vida vivida do jeito que a vivo hoje não tem caminho pré-aberto para lugar nenhum. Para qualquer lado que eu me virar, será desvirginar", diz. "Então, usando um pouco da lucidez, eu passo a focar o dia no próprio dia e realmente comemoro cada dia suplementar."
Ele continua: "Isso também joga na cara a nossa condição de soberania, de autonomia, de liberdade. Inventar a própria vida. Não tem por que ir atrás do que já foi feito, não tem por que seguir protocolos já sovados, não tem por que percorrer percursos já desgastados. Fica explícita a possibilidade fundamental do possível".
Para 2025, sustenta um plano: o de trabalhar menos até, lentamente, se aposentar. Exercendo, assim, a soberania que as circunstâncias lhe proporcionaram nos últimos dois anos. "Toda a vida é muito mais motivo de perplexidade do que, propriamente, resultado de uma projeção, de um planejamento", diz. "O mundo avança sem que ninguém tenha muito controle."
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