A França pode estar mergulhada numa crise política e econômica sem fim à vista. Mas a sua alma cultural permanece intacta.
Veja só: Clint Eastwood, aos 94, dirigiu aquele que pode ser o seu último filme, "Jurado Nº 2". Nos Estados Unidos, o filme estreou em 35 salas. Na França, estreou em 550. Como os Estados Unidos são 15 vezes maiores do que a França, é preciso explicar essa diferença.
Não tem mistério, dizem alguns. É uma decisão comercial: os filmes mais recentes de Clint não foram sucessos de bilheteria. A produtora foi apenas prudente.
Outros, mais sensíveis às teorias conspiratórias, dizem que o problema é político: Clint, um republicano, é "persona non grata" no mundo das artes. A vitória de Donald Trump só agravou as coisas.
Entendo os argumentos. Não compro nenhum deles. Razão pela qual resolvi investigar o mistério num fim de tarde em Paris.
A história começa com uma premissa notável. Justin Kemp (Nicholas Hoult, excelente) é um jornalista, ex-alcoólatra, a dias de ser pai, que é chamado a tribunal para fazer parte de um júri num caso de homicídio.
Quando o julgamento começa, Justin se apercebe de que pode ter sido ele a cometer o crime pelo qual outro homem está a ser acusado.
Na mesma noite do suposto homicídio, Justin dirigia sob chuva intensa, sóbrio, mas emocionalmente alterado, acabando por embater num animal. Pelo menos, ele acredita ter sido um animal, embora não exista vestígio do corpo naquela ponte.
Provavelmente, não foi um animal. Foi a vítima alegadamente assassinada pelo réu e encontrada cá em baixo, nos rochedos.
Como acontece com os heróis trágicos de Clint Eastwood, essa revelação coloca Justin sob a luz forte da sua consciência.
Devo confessar? Devo manter o silêncio? E a que preço? O preço pode ser a condenação de um inocente a prisão perpétua. Mas não será Justin também um inocente?
Ou, dito de outra forma, até que ponto a verdade é justa? Será justo sacrificar tudo —a sua liberdade, a sua família— por um erro? Melhor ainda: por um erro que pode não ser descoberto?
"Jurado Nº 2" fecha a obra de Clint Eastwood com a mesma ambiguidade com que ele a começou. É essa ambiguidade —a recusa de pensar de forma dicotómica; a noção de que as grandes questões morais podem não ter uma resposta clara; a sensibilidade trágica de afirmar que as nossas escolhas, quaisquer que sejam, estão condenadas à partida— é essa ambiguidade, repito, que talvez não tenha um público à altura nos Estados Unidos.
Os últimos anos foram anos fanáticos por aquelas bandas. Não falo apenas do povo que se foi dividindo entre dois exércitos enraivecidos e simplórios. Falo das elites, ou supostas elites, que afundaram também na imoralidade e na cegueira.
O filme de Clint Eastwood questiona: devemos fazer o que está certo ou aquilo que nos é conveniente?
Os sinais que vemos não são animadores. Joe Biden, no recente perdão ao seu filho Hunter pelos crimes de que foi condenado, respondeu como se fosse Donald Trump: as nossas conveniências acima de tudo. Nem que para isso atropelemos a nossa palavra e o próprio sistema de Justiça que é nossa obrigação preservar.
Curiosamente, no filme de Clint Eastwood, a sua fé derradeira está nesse sistema de Justiça e nos seus servidores. Como se fossem eles a última barreira entre a decência e o despotismo.
No ambiente pestilento e febril em que afundou a república americana, é natural que "Jurado Nº 2" seja um objeto estranho e anacrônico, literalmente sem lugar. Basta ver as listas dos melhores filmes do ano, onde deveria constar por direito próprio, e que ignoraram o canto do cisne de um dos maiores criadores americanos.
"Um dia, o último retrato de Rembrandt e o último compasso de Mozart terão deixado de existir", escreveu Oswald Spengler, "porque o último olho e o último ouvido capazes de compreender as suas mensagens terão desaparecido."
Anos atrás, essa observação me pareceu excessiva. Ainda me parece. Mas será excessiva quando não tivermos mais Paris?
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