O ano só acaba quando acaba. Dias atrás, indiquei cinco livros de não ficção deste ano para a Folha. Mas só nesses últimos dias de 2024 encontrei o melhor de todos: o ensaio de Adam Kirsch, o notável ensaísta da revista The New Yorker, intitulado "On Settler Colonialism: Ideology, Violence, and Justice". Ainda vai a tempo?
Espero que sim. É um livro que responde à pergunta mais importante, e mais inquietante, do meu 2024: como explicar a nova vaga de antissemitismo que se espalha pelo mundo?
Não, mil vezes não: não falo das críticas legítimas a Israel e às atrocidades cometidas em Gaza. Falo de um antissemitismo que já existia antes do massacre do Hamas e que se reforçou com ele.
Falo do ódio puro ao judeu por ser judeu, independentemente de ele viver em Israel, nos territórios ocupados, em Paris, em Londres, em São Paulo.
Adam Kirsch responde: sem entender o conceito de "settler colonialism", uma moda ideológica nas universidades ocidentais das últimas décadas, é impossível entender o clima de ódio em que vivemos.
Originalmente, "settler colonialism" (podemos traduzir por colonialismo de assentamento, talvez) é uma teoria sobre os Estados Unidos, a Austrália ou o Canadá que procura mostrar a ilegitimidade estrutural desses países, que se construíram pela eliminação dos indígenas e pelo roubo das suas terras.
No caso dos Estados Unidos, foram os colonos brancos, de origem europeia, os agentes do crime. No caso de Israel, o "colonialismo de assentamento" teria sido exercido pelos judeus (ou sionistas, para usar o termo politicamente correto) sobre os palestinos "originais".
E como resolver esse crime?
Lendo a bibliografia dos especialistas no assunto, Kirsch não encontra resposta. Não admira: se o "colonialismo de assentamento" se apresenta como a teoria política de um pecado original, a única forma de corrigir esse pecado passaria por ceder as terras aos indígenas e, eventualmente, deportar a população "invasora" para os seus países ou regiões de origem.
Nesse sentido, e como afirmam os autores do "colonialismo de assentamento", nem a população negra dos Estados Unidos estaria a salvo, apesar dos seus antepassados terem sido trazidos como escravos para o chamado Novo Mundo. Tal como os brancos, eles não pertencem ao território.
Nas palavras bizarras de Kyle Mays, um dos autores dessa teoria, "os negros estão apagando os povos indígenas, tentando substituí-los ou são verdadeiros colonizadores".
O problema, repito, é numérico: os indígenas, na Austrália ou nos Estados Unidos, representam 3% da população total. Imaginar, só como hipótese, o retorno dos brancos à Europa e dos negros a África é tão delirante que mesmo os teóricos do "colonialismo de assentamento" hesitam em defender tal coisa.
Mas a hipótese não é apenas delirante. Ela parte de uma premissa errada, sustenta Adam Kirsch: a ideia de que é possível fixar no tempo quem são os povos "originais" de um território.
Para ficarmos nas Américas, e de uma perspetiva científica, os mais antigos seres humanos a habitar o continente terão vindo da Ásia Oriental há mais de 25 mil anos.
Os "nativos" tornam-se nativos, eis o ponto. Mas não apenas isso: eles tornam-se nativos porque exercem violência e conquista sobre populações igualmente "nativas".
Para usar o paradigma do próprio "colonialismo de assentamento", antes de serem vítimas desse colonialismo, os nativos exerceram-no sobre outros nativos. A arqueologia, os estudos paleontológicos, a evidência do DNA apontam para esse passado de guerra e apropriação permanentes.
É uma observação que nada tem de especial: a história da humanidade, como lembrava Churchill, é a história dos seus massacres. Os Estados Unidos, o Canadá ou a Austrália não são muito diferentes da Rússia, da China ou do Irão.
Ou, recuando ainda mais no tempo, dos babilônios, dos assírios ou dos persas. Ou dos astecas, dos maias ou dos incas.
E Israel?
Nos últimos anos, Israel tem sido apresentado como o exemplo supremo do "colonialismo de assentamento". Ponto prévio: se falamos da construção ilegal (e imoral) de assentamentos na Cisjordânia, em território alocado a um futuro estado palestino, é evidente que falamos de uma colonização abusiva.
Mas os teóricos do "colonialismo de assentamento" não falam dessa realidade. "Colonialismo" é todo território de Israel, como se a experiência histórica daquela região fosse comparável à colonização dos europeus nas Américas: invasão, expropriação, genocídio.
Os sionistas, no século 19, teriam assim considerado a Palestina como "terra nullius" —território de ninguém, pronto para ser tomado pela força. É isso que justifica o clamor "From the river to the sea, Palestine will be free", algo como do rio Jordão ao Mar Mediterrâneo, a Palestina será livre.
Fatalmente, a história desautoriza essa versão. Para começar, o território pertencia ao Império Otomano e, depois da Primeira Guerra Mundial, continuava sob administração do Reino Unido, que cumpria um mandato da Liga das Nações.
Como explica Kirsch, a "invasão sionista" estava dependente da permissão dos otomanos e dos britânicos. E da ONU, já agora, que apresentou o Plano de Partição do território em 1947, determinando dois estados —um judaico, outro árabe.
Quando Colombo chegou à América, ele não pediu licença a ninguém.
Por outro lado, o quase extermínio das populações indígenas das Américas, por violência ou contaminação por patógenos, é desmentida pelos números no caso do conflito israelense-palestino: em 1948, existiam 1,3 milhões de árabes em toda Palestina; hoje, serão 7,5 milhões. Aliás, só existe conflito precisamente porque existem realidades demográficas que o sustentam.
Finalmente, não deixa de ser irônico que o "colonialismo por assentamento", na obsessão pela busca dos primeiros habitantes "legítimos", se esqueça de um certo povo de Canãa, algures na Idade Média do Bronze, e que constitui a raiz semita dos futuros árabes e judeus.
Para que a ironia fosse total, só faltava aos sábios do "colonialismo por assentamento" negar que os judeus foram vítimas desse processo quando o Império Romano colonizou a Palestina e quase eliminou a presença judaica na região.
A história é sempre mais complexa do que os "terríveis simplificadores" imaginam. E o livro de Adam Kirsch relembra-nos essa complexidade para que os fantasmas do ressentimento e do ódio não tenham a última palavra em questões de justiça e paz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário