A Justiça brasileira está debruçada sobre o julgamento de limites para as redes digitais (chamadas inadequadamente de "sociais"). O debate público é dominado pelas questões de ameaças e convocações de atos e atitudes contra a democracia, envolvendo ataques às instituições e agentes políticos ou de Estado.
É preciso, no entanto, ampliar o debate das consequências danosas das redes à vida privada e, principalmente, na construção de um processo de barbárie em plena marcha. É bem popular a discussão sobre "cultura do cancelamento" ou outras formas de violência digital. Mas uma delas se constitui um crime referendado muitas vezes por figuras públicas e até por autoridades: a cultura do "eu vou te expor".
A prática pegou carona em legítimas denúncias de irregularidades diversas, desrespeito ao Código do Consumidor, violências de agentes policiais, assassinatos e outros crimes dependentes de coleta de provas para quebrar a lógica da impunidade.
O audiovisual já se provou muito útil nessas circunstâncias. Um bom exemplo é a história de dona Joana da Paz, que filmou o conluio da polícia com o tráfico em Copacabana, agora lançada em filme estrelado por Fernanda Montenegro. A lição de Joana: com as provas na mão, foi procurar os agentes de Estado. Embora seja impossível um contrafactual, uma vez que a única rede digital no início dos anos 2000 apenas engatinhava, o comportamento de Joana é o esperado no Estado democrático de Direito.
Com o domínio das redes digitais, muitas pessoas acreditam ser possível fazer justiça com as próprias mãos ou com o celular em punho. Sob a justificativa de lentidão da Justiça ou de sua conivência sobretudo com os mais ricos e poderosos, o "eu vou te expor" se transformou em tribunal. Condena antes de julgar, enterra a presunção de inocência e debilita o direito de defesa.
Faz tempo que a humanidade havia percebido que a praça pública estava longe de ser o melhor tribunal para combater a criminalidade, como classicamente relatou Michel Foucault em seu "Vigiar e Punir". As redes digitais, no entanto, provocaram um retrocesso na civilidade. Figuras públicas, cheias de boas intenções e considerando a si mesmas "pessoas justas", vão a público, sem cerimônia, ameaçar outros com a arma do "eu vou te expor" para seus milhares de seguidores. Mesmo em casos de litígio familiar, que a Justiça garante o sigilo processual. Não percebem o quanto de barbárie existe neste ato banalizado.
Qual a diferença de expor uma pessoa nas redes, roubando-lhe os direitos do legítimo processo penal, e os justiceiros que lincham um assaltante amarrado ao poste? Pior. As redes digitais como tribunal estão matando pela exposição. Os casos de suicídios de jovens, principalmente, decorrem da cultura da exposição estimuladas por influenciadores digitais.
É preciso que, além de cercar o risco democrático, o Judiciário blinde também o direito de cada indivíduo e, em última instância, a sua própria razão de ser.
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