quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

União Europeia e América do Sul estão condenadas a se entenderem, Rui Tavares - FSP

 Quando os seis países fundadores da atual União Europeia negociaram o Tratado de Roma, em 1957, o governo do Reino Unido enviou um ministro para fazer uma turnê pela América do Sul e tranquilizar as elites dos países visitados explicando que, como é evidente, seria impossível esses seis países com interesses tão diferentes se entenderem para formar uma união aduaneira e negociar pautas e tarifas em conjunto.

O ministro britânico estava enganado. Não só os seis países fundadores (eram então Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Holanda) conseguiram criar uma união aduaneira, peça fundamental da então Comunidade Econômica Europeia, como seguiu-se um mercado comum e depois um mercado único europeu.

Javier Milei (Argentina), Luis Lacalle Pou (Uruguai), Ursula von der Leyen (União Europeia), Luiz Inácio Lula da Silva e Santiago Peña (Paraguai), durante cúpula do Mercosul, em Montevidéu, onde foram concluídas as negociações para o acordo entre UE e Mercosul
Javier Milei (Argentina), Luis Lacalle Pou (Uruguai), Ursula von der Leyen (União Europeia), Luiz Inácio Lula da Silva e Santiago Peña (Paraguai), durante cúpula do Mercosul, em Montevidéu, onde foram concluídas as negociações para o acordo entre UE e Mercosul - Eitan Abramovich - 6.dez.24/AFP

O Tribunal de Justiça das Comunidades (hoje Tribunal de Justiça da União Europeia) foi ainda mais longe do que os tratados e, para garantir que os Estados-membros não reintroduziam pela janela o protecionismo interno que tinham expulsado pela porta, foi decretada a primazia do direito europeu sobre o direito nacional.

Os europeus dessa época estavam bem cientes do fracasso dos projetos de paz do período entre as duas guerras (1918-1939) e entenderam que apenas um projeto de integração profunda e de raiz poderia funcionar dessa vez.

Foi isso que o governo britânico de então não percebeu (o Reino Unido viria a entrar década e meia depois), e foi com base nesse mal-entendido que tentou convencer os sul-americanos a não se preocuparem demais com o projeto europeu (que ameaçava a penetração de produtos agrícolas, incluindo café e bananas, no mercado dos países que não tinham à época colônias africanas, e que teriam acesso mais fácil aos produtos equivalentes dos países europeus que ainda eram colonizadores).

O mundo mudou muito, mas os mal-entendidos persistem. Há duas semanas, em Brasília, alguns amigos brasileiros diziam temer derrubar o governo francês por causa do acordo entre a União Europeia e o Mercosul. No dia seguinte, o governo francês caiu, por uma razão nada relacionada ao Mercosul.

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Visto de longe, é fácil não entender como na Europa são os governos nacionais que estão mais frágeis do que a própria União. Não foi só o governo francês que caiu; o alemão foi nesta semana reprovado por uma moção de censura. Ninguém faz ideia do que sucederá nas eleições.

Da Romênia (que teve de anular o primeiro turno das suas presidenciais por interferência externa) à Espanha (com o governo seguro por uma maioria estreitíssima), a política nacional está presa por fios. Embora a política da União Europeia tenha muito menos visibilidade do que a dos Estados-membros, a verdade é que tem um rumo mais definido pela sua própria lógica interna enquanto projeto de integração.

Com Donald Trump no poder e Vladimir Putin em guerra, a Europa e a América do Sul correm o risco do isolamento. Não têm mais para onde se virar senão uma para a outra. Para lá do acordo UE-Mercosul, são os laços políticos que precisam ser mais estreitados. Depois de uma história de mal-entendidos, estamos condenados a entender-nos.

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