sábado, 31 de dezembro de 2022

Preguiça para fazer exercício? Os micróbios no intestino podem ser a explicação, Fernando Reinach, OESP

 Tem gente que acorda todo dia disposto a se exercitar. Outros, como eu, relutam em fazer exercícios, e só se mexem porque sabem que praticar algum exercício retarda o envelhecimento, melhora a qualidade de vida, e faz bem à saúde. Qual a razão dessa diferença? Como a motivação é controlada pelo cérebro é por lá que deve estar a resposta.

Um grupo de cientistas resolveu estudar esse fenômeno em camundongos. Pegaram uma centena desses bichinhos e colocaram em gaiolas com aquelas rodas onde eles podem entrar voluntariamente para correr sem sair do lugar. O que os cientistas observaram é que alguns não se exercitavam, outros corriam alguns quilômetros e outros chegavam a correr 30 km por dia. Eles compararam os animais dos extremos, os mais preguiçosos com os mais animados. Fizeram todos os tipos de exames para tentar identificar alguma diferença metabólica ou genética que explicasse a diferença entre os grupos. E, para surpresa dos cientistas, encontraram uma grande diferença quando examinaram a flora intestinal dos animais. Descobriram que a flora intestinal de animais atletas é diferente da presente em animais preguiçosos.

A flora intestinal, ou o microbioma intestinal como também é chamado, é a coleção de microrganismos que habitam nosso intestino (e de todos os animais). Lá existe um número de bactérias maior que o número de células que existem em nosso corpo. Essas bactérias pertencem a centenas de diferentes espécies. O microbioma é enorme e muito diverso. Sabemos que ele varia entre pessoas, seja em quantidade, seja nos tipos de bactérias presentes. Elas ajudam na digestão e produzem substâncias que afetam nossa saúde. Algumas doenças podem ser curadas alterando o microbioma e existem procedimentos médicos que consistem no transplante de microbioma entre pessoas.

Cientistas descobriram que a disposição para fazer exercício físico pode estar ligada ao microbioma intestinal
Cientistas descobriram que a disposição para fazer exercício físico pode estar ligada ao microbioma intestinal  Foto: Sergio Castro/Estadão

Mas será que é a natureza do microbioma que determina se os camundongos gostam de se exercitar? Ou seria a prática de exercício que faz com que os animais tivessem microbiomas diferentes? Para responder essa dúvida, os cientistas trataram os camundongos com antibióticos que matam grande parte do microbioma. Descobriram que os fanáticos por exercício viravam preguiçosos após o tratamento e que os preguiçosos continuavam preguiçosos. Em seguida, transplantaram o microbioma presente nos atletas para o intestino dos preguiçosos e descobriram que bastava isso para eles se tornarem atletas. E mais, descobriram que camundongos criados sem microbioma (em ambientes estéreis) eram preguiçosos, mas viravam atletas se tivessem seus intestinos colonizados por bactérias presentes em atletas. Esses resultados demonstram que é o microbioma que determina se o camundongo é atleta ou preguiçoso.

Em seguida, os cientistas foram investigar qual o componente produzido pelo microbioma dos atletas responsável por torná-los atletas. Depois de muitos experimentos descobriram que a molécula responsável, produzida pelo microbioma dos atletas, era um tipo de FAA (fatty acid amide). Bastava colocar essa molécula na dieta de um camundongo preguiçoso e ele se tornava um atleta. Até esse ponto os cientistas haviam demonstrado que, caso o microbioma do camundongo produzisse FAA ele era atleta, caso não produzisse ele era um preguiçoso.

Mas como o FAA provocava essa mudança de comportamento? Após muitos experimentos foi possível demonstrar que o FAA se liga a receptores presentes em terminações nervosas no intestino, estimulando esses neurônios. Os neurônios por sua vez levam o estímulo para uma região do cérebro onde inibem a produção de uma enzima chamada MAO (monoamina oxidase). Como a MOA degrada a dopamina, menos MOA significa mais dopamina, o que provoca um aumento na vontade dos camundongos de se exercitarem. É um caminho complexo, mas o que importa é entender que uma molécula produzida pelas bactérias presentes no intestino controla a vontade de se exercitar.

Esse é mais um exemplo da importância do microbioma. É bom lembrar que todos esses experimentos foram feitos em camundongos e precisam ser refeitos em seres humanos para termos certeza que um mecanismo semelhante existe em seres humanos. Mas se isso for verdade, talvez no futuro possamos acabar com a preguiça modificando nosso microbioma ou ingerindo todos os dias uma cápsula de FAA. Para mim seria um milagre: não consigo me imaginar acordando de manhã com vontade de me exercitar.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Comandante da Marinha se nega a participar de cerimônia de passagem de comando, FSP

 Cézar Feitoza

BRASÍLIA

O comandante da Marinha, Almir Garnier, decidiu romper a tradição e não participar da cerimônia de passagem de comando da Força.

O evento que vai oficializar a troca da chefia da Marinha está marcado para o dia 5 de janeiro no Clube Naval, em Brasília. O futuro comandante Marcos Sampaio Olsen, no entanto, já assumirá o cargo de forma interina no sábado (31) e participará das cerimônias oficiais representando a Força.

Ao invés da tradicional passagem de comando, Olsen deverá somente assumir o cargo em cerimônia com o futuro ministro da Defesa José Múcio Monteiro, o Alto Comando da Marinha e convidados.

O presidente Jair Bolsonaro, acompanhado do ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto e do comandante da Marinha Almir Garnier Santos, deixa a sede do Comando da Marinha após um almoço no local - Pedro Ladeira/Folhapress

Almir Garnier foi o único comandante que não se reuniu com Múcio no período de transição, como revelou a Folha. Escolhido para chefia o Ministério da Defesa, o ex-presidente do TCU (Tribunal de Contas da União) chegou a trocar mensagens com o almirante e se dispôs a ir ao Rio de Janeiro para encontrá-lo, mas não teve sucesso.

A reportagem procurou a Marinha para obter detalhes sobre a passagem de comando, mas não obteve resposta.

O comandante da Marinha queria entregar o cargo antes da posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ele chegou a planejar a cerimônia para o dia 28 de dezembro.

O Alto Comando da Marinha, no entanto, se reuniu às vésperas do Natal e convenceu Almir Garnier a entregar o cargo somente em janeiro.

Segundo relatos feitos à Folha, o comandante da Marinha disse ao almirantado que estava decepcionado com a vitória de Lula, razão pela qual gostaria de deixar o posto antes da posse. Apesar da vontade pessoal, de acordo com uma pessoa presente na reunião, Almir decidiu submeter a decisão ao colegiado de almirantes de Esquadra.

A avaliação majoritária na cúpula da Marinha é que a manutenção da tradição, com a passagem de comando da Força em janeiro, seria o menos traumático para a transição, considerando que o sucessor será Marcos Sampaio Olsen, almirante respeitado pelos colegas.

Almir Garnier também travou um embate com o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, para definir qual seria a data da passagem de comando.

Paulo Sérgio definiu que a transição ocorreria quarta (28) ou quinta (29), e Múcio acatou a decisão em reunião na última segunda (26). O comandante da Marinha, no entanto, se negou a antecipar a solenidade, como mostrou a Folha.

Diante da crise, Almir e Paulo Sérgio se reuniram na quarta (28) para discutir os rumos da Marinha e a crise envolvendo a transição. Segundo relatos de interlocutores, o ministro da Defesa ouviu o desabafo do chefe da Força Naval e aceitou a ausência do chefe militar na solenidade.

Apesar dos desacertos, José Múcio Monteiro estará ao lado dos comandantes escolhidos por ele durante a posse de Lula, durante as honras militares prestadas no Palácio do Planalto. São eles Júlio César de Arruda (Exército), Marcos Sampaio Olsen (Marinha) e Marcelo Kanitz Damasceno (Aeronáutica).

A posse de Múcio está marcada para a próxima segunda-feira (2), na sede do Ministério da Defesa. Ele já definiu que os dois principais auxiliares na pasta serão o almirante Aguiar Freire, futuro chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, e o ex-secretário de administração do TCU Luiz Henrique Pochyly, que será secretário-geral da pasta.

Além deles, o ministro escolhido por Lula convidou o brigadeiro Rui Mesquita para chefiar a Secretaria de Produtos de Defesa —uma das mais cobiçadas da pasta, por envolver relação com os empresários da Base Industrial de Defesa.

Carta aos filhos do Pelé, FSP

 Jéssica Moreira

SÃO PAULO (SP)

Celeste, Edinho, Flávia, Jennifer, Joshua e Kely Cristina: eu sinto muito, mas muito mesmo. Para o mundo, a perda do rei. Para vocês, a perda do pai: com todos os lados, os defeitos e qualidades, ausências e presenças, o melhor e também o pior do Edson Arantes do Nascimento.

Nunca estamos preparados para o fim. Podemos ler todos os textos, até nos especializamos na temática da morte e seus processos, mas quando ela chega, atravessa tudo. O tempo e o espaço ficam suspensos, congelados. Exigindo de nós, filhos de pais que morreram, renascer e reinventar um mundo sem eles.

Não conheço vocês pessoalmente. Nem posso dizer que sei o que sentem agora. Sou órfã de pai há pouco mais de oito anos. Vocês são órfãos agora. Independente da idade, é sempre difícil renascer sabendo que não existe mais uma figura física do pai nesse plano.

O amparo que recebem vem do mundo todo. O amor vem de todas as partes. Mas recebam a carta desta que um dia também esteve no leito de um hospital sem saber muito o que dizer ou sentir, apenas querendo estar perto do seu pai mais um pouco.

Aliás, Kely, a foto debruçada no peito do seu pai em um leito hospitalar me acalentou. Só quem é filho ou filha sabe quão importante é esse abraço de despedida à beira do desconhecido da morte.

A opção pelos cuidados paliativos foi muito certeira. Embora ainda pouco acessível à grande maioria da população brasileira, o processo envolvendo Pelé popularizou o assunto cuidados paliativos, deixou palpável um tema que antes parecia tão difícil de entender.

psicóloga paliativista Silvana Aquino resumiu bem a importância de viver e morrer sob a perspectiva desse tipo de cuidado em suas redes. Dentre os vários tópicos, como "aliviar a dor; não acelerar nem adiar a morte; afirmar a vida e considerar a morte um processo natural", eu destacaria dois deles: "auxiliar os familiares durante a doença do paciente e ajudar a família a enfrentar o luto".

Silvana ainda reafirma: "Passou seus últimos dias no quarto, cercado da família. Recebeu remédios para aliviar seu desconforto, sem precisar de aparelhos que só serviriam para prolongar seu sofrimento. Pôde viver a experiência de se desligar aos poucos do mundo, mas ainda assim conectado ao amor que o cercou, a despeito de situações inacabadas, que só dizem respeito a quem com ele conviveu. Teve a chance de torcer pelo Brasil. Teve a chance de dizer adeus".

Talvez tenham sido esses cuidados que permitiram um último abraço no seu pai e quem sabe esse exemplo permita que outros filhos e filhas tenham a chance de dar esse abraço final em seus pais também.

Espero que vocês tenham conseguido dizer a ele tudo aquilo que desejavam. Como meu pai ficou em coma por muitos dias, a única coisa que fazia era cantar sambas que havia me ensinado na infância. Achava que em algum lugar de seu inconsciente poderia estar rindo diante do processo de (in)finitude.

Espero também que o perdão possa ter aparecido. Os pais erram. Mesmo sendo nossos heróis e referências. No caso de vocês, modelo de um país todo, de um mundo inteiro. Mesmo assim, erram.

Fico feliz em saber que os filhos de Sandra Regina, uma das filhas que morreu em 2016, tenham sido recebidos por ele no hospital. E o perdão, quase nunca simples, tenha sido parte do processo de não fantasiar quem amamos, mesmo na partida.

"Errar e acertar fazem parte da nossa vida, nem tudo é mil maravilhas, toda família tem brigas e rusgas, a nossa não é diferente, mas há momentos que a união e o amor são mais importantes do que qualquer coisa. Agradeço a Deus por ter proporcionado esse momento, pois era o que minha mãe mais sonhava, tem coisas que uns plantam e outros colhem e nós estamos colhendo", escreveu em suas redes um dos netos de Pelé, Octávio Felinto Neto, filho de Sandra.

Espero que tenham conseguido contar histórias um para o outro. A foto de quase todos vocês juntos no hospital me lembra que a morte não é somente sinônimo de tristeza. E que o luto traz um sentimento misturado mesmo. Afinal, nossas vidas são forjadas por alegrias e tristezas, existindo concomitantemente. Por que haveria de ser diferente nesse momento? Diante da morte, a memória é um espaço seguro de existência. Morre Edson, mas fica Pelé. Mas e o pai? O que será que fica dele em cada um de vocês?

Esta não é uma carta cheia de conselhos, é apenas o amor de quem também já perdeu, mesmo não sabendo, nem um centímetro, da dor que sentem agora. O mundo todo chora a morte do Rei Pelé, mas só vocês sabem a dor de perder Edson, o pai.

Jéssica Moreira

Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Coautora do Blog Morte Sem Tabu e Cofundadora do Nós, mulheres da periferia

Clube da estreia de Pelé virou supermercado em Bauru (SP), FSP

 

SÃO PAULO

Está longe de Bauru, no interior de São Paulo, a caixa de engraxate que Pelé carregava para conseguir alguns trocados na estação ferroviária da cidade em que viveu dos cinco aos 15 anos, antes de ir para Santos.

Foi lá que ele começou a jogar futebol –primeiro nos campinhos de terra, descalço, depois nos times de várzea, com as primeiras chuteiras e, finalmente, no BAC (Bauru Atlético Clube), em sua estreia profissional.

A caixa é um dos itens do Museu Pelé, instalado nos antigos Casarões do Valongo, em Santos. No local estão expostos também documentos, camisas, chuteiras, bolas e troféus do acervo pessoal do mineiro de Três Corações.

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Pelé, o segundo agachado, na equipe juvenil do BAC, em Bauru - Bauru Atlético Clube/Divulgação

Para Bauru, não sobrou nada da linha do tempo do melhor jogador da história. Os planos para construir um memorial em homenagem ao atleta nunca chegaram perto da execução e, ao longo dos anos, foram apagados marcos importantes da década vivida por Pelé na cidade.

O BAC, o primeiro clube, foi demolido em 2006 para a construção de um supermercado. Um mural que retrata o antigo estádio e um painel com fotos são as únicas lembranças dos dias de glória em que a equipe juvenil contava com o talento do futuro rei do futebol.

Após anos de abandono, de invasões e de um incêndio, a casa da família Arantes do Nascimento, na região central, foi demolida em 2015. O ex-jogador passava as temporadas de folga com os pais no imóvel, mas nunca morou lá.

Reconhecido mundialmente, Pelé manteve amigos durante muitos anos e recebeu homenagens na cidade em que foi revelado.

Nas últimas quatro décadas de vida, no entanto, deixou de visitar Bauru e aumentou a distância dos amigos da infância e da adolescência, sem uma explicação conhecida para isso.

Em 2014, ano da Copa do Mundo no Brasil, o memorialista Luciano Dias Pires, que coleciona histórias sobre a cidade do interior paulista, declarou ter vontade de encontrar o jogador e perguntar porque ele não aparecia mais no lugar em que despontou.

Em 2020, ao ser entrevistado pela CNN, Pelé lembrou dos períodos de férias que passava em Bauru ao lado da família.

"Eu chegava todo cheio de máscara e ele (Dondinho, o pai) falava: não vem com esse negócio aí não porque você ganhou de Deus esse presente de ser jogador de futebol. Murcha essa bolinha".

Foi por causa de Dondinho que a família mudou para Bauru, em 1945. Também jogador, ele havia sido contratado pelo Lusitana (depois BAC), onde atuou durante oito anos até encerrar a carreira, devido a lesões que traumatizaram a família. A mãe de Pelé, Celeste, 100, temia que o filho tivesse o mesmo destino.

Nesta quinta-feira (29), dia em que o jogador morreu, a prefeita de Bauru, Suéllen Rosim (Patriota), decretou luto oficial de três dias e lembrou que foi na cidade que o atleta deu seus primeiros passos.

É uma história que está contada no livro "De Edson a Pelé", de 1997, sobre a infância do rei, escrito pelo jornalista Luiz Carlos Cordeiro.

"Onde se anunciava a sua presença, lá ia o povão gozar as delícias de um grande jogo, de lances fenomenais. E todos já sabiam: onde tinha Pelé, tinha espetáculo", diz trecho da publicação.