domingo, 29 de março de 2020

Em carta à Folha, banqueiros questionam reportagem sobre aumento de juros durante crise do coronavírus, FSP


Para presidentes de Bradesco, Itaú e Santander, texto fomenta "desentendimento e animosidade em relação às instituições financeiras"



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SÃO PAULO
Os presidentes dos três maiores bancos privados do país enviaram nesta sexta-feira (27) uma carta endereçada ao comando da Folha em que questionam as informações da reportagem "Bancos elevam juros e restringem negociação com a crise do vírus", publicada pelo jornal nesta sexta-feira (27).
O texto mostrou a dificuldade de pequenos e grandes empresários em conseguir crédito e o aumento de taxas de juros nas novas contratações após o surto de coronavírus. O anúncio feito pela Febraban (Federação Brasileira de Bancos) de que clientes poderiam suspender por dois meses pagamentos de parcelas de contratos em dia também não estaria sendo cumprido, segundo relatos.
Octavio de Lazari, do Bradesco; Candido Bracher, do Itaú-Unibanco; e Sérgio Rial, do Santander, afirmam que leram o texto publicado pelo jornal com "profunda consternação e uma dose de decepção". Os banqueiros afirmam que a reportagem tem viés, é parcial e contém erros de apuração.
Para os executivos, o título e o texto "desmerecem o rigor jornalístico que tem marcado, até aqui, a atuação da Folha de S.Paulo, digna de reconhecimento por informar e alertar a população sobre os riscos, impactos e ações preventivas contra a pandemia de Covid-19."
"Nenhum dos casos específicos apresentados na reportagem foi alvo de consulta prévia aos bancos mencionados. Hoje, ao fazermos nossa lição de casa, que incluiu uma profunda checagem da situação de cada cliente mencionado, descobrimos que nenhuma das histórias apresentadas condiz com a realidade. A reportagem é, portanto, um exemplo de mau jornalismo", diz a carta.
Para Lazari, Bracher e Rial, o texto da Folha se baseia em casos isolados e fomenta "desentendimento e animosidade em relação às instituições financeiras, que têm agido como aliadas de primeira hora da sociedade na busca incessante por instrumentos capazes de mitigar os impactos da pandemia no país."
Segundo a carta, a reportagem "desinforma o leitor, por exemplo, ao apontar como elevação de juros o aumento de valor em parcelas de dívidas postergadas, um erro primário."
Os executivos dos bancos afirmam que a interrupção por 60 dias no pagamento de dívidas está sendo cumprida pelas instituições, mas afirmam que "o objetivo da medida foi dar ao tomador de crédito mais prazo e, principalmente, fôlego financeiro neste momento mais crítico. Ou seja, nunca se tratou de uma medida de perdão de dívida, seja do principal ou dos juros, e não foi apresentada desta forma."
A carta afirma que "em um momento excepcional como o atual, erros podem ser -e serão- cometidos, mas esperamos que sejam rapidamente corrigidos."
O texto assinado pelos presidentes dos bancos termina com a afirmação de que as instituições financeiras trabalham para que "a atividade econômica do país sofra menos danos e seja capaz de emergir mais rapidamente desta crise. E esse trabalho merece respeito."

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Eyam: a vila que se sacrificou pela quarentena, e salvou milhares, FSP

O conceito de quarentena surgiu durante a Grande Peste de 1348. Em Veneza, navios que chegavam à cidade eram obrigados a parar numa ilha próxima à cidade, hoje chamada Lazaretto Vecchio, por 40 dias antes de poder descarregar. Lá, ainda hoje arqueólogos topam com valas coletivas.
A peste bubônica continuaria a castigar a humanidade muito depois da pandemia medieval que removeu até um terço da população da Europa. Surtos continuaram a ocorrer até a criação da medicina científica no final do século 19.
Um deles seria o de Londres em 1665, que mataria até 100 mil pessoas, ou um quarto da população do lugar que disputava com Paris o título de maior cidade do mundo cristão. Foi em setembro desse ano que o alfaiate da pequena vila de Eyam – então com, estima-se, 800 habitantes e ainda hoje com menos de 1000 – recebeu um carregamento de tecidos da capital. Neles, pulgas contaminadas. Em seis semanas, as 29 primeiras vítimas haviam perecido.
O surto pareceu arrefecer ao fim do ano, com a chegada do inverno e, em maio de 1666, não havia mais nenhum caso. Foi quando a doença renasceu na forma pneumônica, mais fácil de passar. E, diante disso, houve uma troca de liderança. O reitor – o equivalente a padre na Igreja Anglicana, que não usa o título protestante de “pastor” – William Mompesson tomou o lugar do puritano Thomas Stanley como líder da cidade, com a promessa de tomar medidas enérgicas. E tomou. O religioso devisou um plano tanto radical quanto altruísta: Eyam entraria em quarentena voluntária e absoluta. A cidade ficava numa rota comercial importante entre Sheffield e Manchester, e poderia arrasar os dois centros urbanos.
Um círculo de pedras foi estabelecido a uma milha (1.609 m) do centro da cidade. Ninguém entrava nem saía. Os habitantes sobreviviam de comprar alimentos na borda do círculo, pagando com moedas embebidas em vinagre, o que acreditavam poder desinfetá-las.
Rapidamente, a pequena vila se tornou um cenário desolador. As pessoas tiveram que enterrar seus próprios entes queridos. Elizabeth Hancock, uma das moradoras da cidade, teve que, em oito dias, enterrar seus seis filhos e o marido. O reverendo Mompesson determinou que os cultos passassem a ser celebrados ao ar livre, e muitos dos sobreviventes foram os que se isolaram em choças longe do centro da vila. Em uma carta, o líder descreveu a situação: “Meus ouvidos nunca escutaram tamanha e tão dolorosa lamentação. Meu nariz nunca percebeu cheiros tão horrendos, e meus olhos nunca contemplaram espetáculos tão tétricos. Era o Gólgota, um lugar de caveiras”.
Sob a enérgica liderança de Mompesson, que sobreviveria, mas perderia a esposa, a quarentena iria até o fim. Os números são discutidos ainda hoje entre historiadores: Eyam pode ter perdido 260 mortos de uma população de 350, ou 370 de 800, ou 273 (o número oficial registrado na paróquia) de 800. Seja como for, em seu sacrifício abnegado, correto e visto como muito cristão, a vila evitou que qualquer cidade próxima fosse contaminada, e que o surto no país fosse pior, talvez salvando centenas de milhares. Ainda hoje, todo primeiro domingo de agosto, o sacrifício é relembrado na paróquia da vila. Na cultura britânica, o martírio de Eyam foi celebrado em verso, prosa, teatro, música e até óperas.

Mauricio Stycer História alternativa?, FSP


Philip Roth surpreendeu muita gente ao publicar, em 2004, "Complô contra a América". Diferentemente da maioria dos seus romances, este deixa o realismo de lado para se aventurar num gênero que muitos chamam de "história alternativa".
E se Charles Lindbergh tivesse disputado e vencido Franklin D. Roosevelt na eleição presidencial de 1940? Não é um ponto de partida aleatório. O aviador, de fato, se aventurou pela política e naquele ano, especificamente, era um dos principais defensores da ideia de que os Estados Unidos não deveriam entrar na Segunda Guerra. Lindbergh e os que defendiam essa tese, conhecidos como "isolacionistas", se agrupavam em torno de um comitê chamado "America First".
O escritor imagina o impacto dessa situação sobre a sua família, judeus de classe média baixa que moram no bairro de Weequahic, em Nova Jersey: o pai, um corretor de seguros, a mãe dona de casa e dois filhos. Philip, o mais jovem, narra o romance.
A vitória de Lindbergh na eleição transforma a vida da família. O primeiro ato do presidente é um acordo com a Alemanha nazista. Meninos judeus são enviados para um programa de intercâmbio com o objetivo de americanizá-los.
Cena da série "Complô Contra a América", da HBO, baseada em livro de Philip Roth
Cena da série "Complô Contra a América", da HBO, baseada em livro de Philip Roth - Divulgação
O romance provocou um misto de admiração e choque. Mas o seu contato com a realidade só foi percebido mais de uma década depois do lançamento, em 2016, na eleição de Donald Trump, cujo slogan era justamente "America First".
Questionado a respeito, em 2017, pela revista The New Yorker, Roth respondeu: "É mais fácil compreender a eleição de um presidente imaginário como Charles Lindbergh do que um presidente real como Donald Trump. Lindbergh, apesar de suas simpatias nazistas e tendências racistas, foi um grande herói da aviação. Tinha caráter e substância e, junto com Henry Ford, era o mais famoso americano de sua época. Trump é apenas um picareta ('a con artist')".
Ao adaptar o romance para a televisão, na minissérie "Complô Contra a América", David Simon (criador da memorável série "The Wire") tinha tudo isso em mente. Como contou à jornalista Liv Brandão, no UOL, quando leu o livro pela primeira vez, em 2004, viu apenas uma alegoria sobre o totalitarismo. Ao relê-lo uma década depois, enxergou os paralelos com a realidade.
Os primeiros dois episódios, de um total de seis, já foram ao ar (na HBO, às segundas-feiras, às 22h, e disponíveis online para assinantes). Muito boa, a adaptação consegue, assim como o romance, dar uma dimensão universal àquele microcosmo familiar.
Simon e Ed Burns, os criadores, parecem não ter pressa em situar o espectador no ambiente histórico e descrever a rotina dos seus personagens. Além do núcleo familiar, dois tipos se destacam, o rabino Lionel Bengelsdorf (John Turturro), que se encanta com Lindbergh, e Evelyn Finkel (Winona Ryder), uma tia ingênua do menino Philip (Azhy Robertson), que se aproxima do religioso.
Houve quem reclamasse do ritmo lento deste início da minissérie. Não vejo assim. Ao contrário, cozinhando em fogo baixo o drama, Simon e Burns estão apenas sendo respeitosos com o livro e preparando o espectador para o que vem por aí. Há muito de Philip Roth na minissérie. O que já vale muito.
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Não queria deixar sem registro que nesta semana o jornalismo de TV mostrou, mais uma vez, a importância que pode ter, quando quer, no combate à desinformação. Merece elogios a longa (80 minutos) edição de quarta-feira do Jornal Nacional, da Globo, demonstrando, com fatos, os erros em quase todas as frases do pronunciamento feito pelo presidente Jair Bolsonaro um dia antes.
Mauricio Stycer
Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.