O dia em que meu marido, Diego, voltou do hospital onde seu pai estava internado, sabia que algo não estava bem. Até ali, os médicos diziam que tudo não passava de uma pedra na vesícula. Mas não era só isso.
Seu Zé passou o Natal de 2024 internado. Virou amigo das enfermeiras e dos motoboys de perna quebrada na única seção onde havia leito: ortopedia. Pela política da boa vizinhança, fingia não ver os colegas fumando pela janela. Era um hospital público na zona norte de São Paulo. O mesmo onde, 11 anos antes, meu pai morreu. Na nossa ingenuidade, ou medo de olhar para o pior, deixamos os sinais de lado: a pele amarelada, os vômitos constantes, o emagrecimento repentino. "Vomitei a vida inteira, é normal."
Nas primeiras visitas, nos encontrava na recepção feito um filósofo grego com a camisola hospitalar, mas com a piada pronta de quem nasceu sob um sol de Sagitário, a 7 de dezembro de 1956. Dias antes, tínhamos comemorado seu aniversário no recém-inaugurado McDonald 's de Perus. "Qual o maior sonho para o próximo ano?", perguntei. "Ganhar na mega", disse, com sorrisão e cabelos grisalhos que me lembravam o Gepeto.
Além de mecânico aposentado, José Garcia Acedo era um artista. No fundo da casa, em um quartinho quase secreto, guardava maquetes das miniaturas de igrejas antigas que construía com madeira coletada na vizinhança. Um marceneiro que contava a história de seu lugar com as mãos, honrando o pai maquinista de maria-fumaça com trens de brinquedo que corriam por suas memórias. Eu nunca quis ser mãe, mas confesso: cheguei a imaginar uma criança correndo no quintal pedindo para brincar com o vovô.
Fui até o hospital. Estudar a morte não nos prepara, mas ajuda a fazer perguntas difíceis. Ao encontrar minha sogra, Fátima, a notícia que ninguém queria ouvir: "é câncer, o Zé tá com câncer". Parei com o médico no corredor: "Por que ninguém nos contou antes?". "É desconfortável dar uma notícia dessas, nem todo mundo quer saber", respondeu.
É nosso direito sabermos de tudo desde o princípio, até mesmo para tomarmos as melhores decisões. Era um tumor de Klatskin nas vias biliares. Antes do anúncio, tentaram uma endoscopia, mas o canal estava obstruído. Ele precisava de uma drenagem como medida de conforto.
Começamos uma corrida contra o tempo. Seu Zé já havia parado de comer, nem contava mais piadas —a única coisa que ainda balbuciava era que queria ir para casa ver seus gatos.
Nossa "luta" não era para salvá-lo, mas garantir dignidade no fim da vida. Combinei a visita de uma paliativista particular, já que não havia nem sequer psicóloga —e a assistente social não era nada gentil. Diego desistiu, com receio de retaliação. Compreensível, diante de histórias que ouvimos.
Estima-se que o Brasil atenda apenas 10% da demanda total de cuidados paliativos, e a cobertura por equipes especializadas no SUS é de cerca de 1%. Cynthia Araújo já explicou: os cuidados paliativos não são apenas para quem está à beira da morte, mas para apoiar paciente e família desde o diagnóstico de doença ameaçadora de vida.
O médico dizia que a situação era gravíssima e ele não poderia ser submetido a cirurgia. O procedimento de alívio não existia no hospital, ele entrou na fila do Cross (Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde). Articulamos com todos os contatos possíveis —sabíamos nossos direitos. Conseguimos, enfim, uma vaga em um hospital público referência em câncer. Nesse dia, as residentes saíam pelos corredores cheias de esperança: seu Zé conseguiu, em breve vai ver seus gatos.
No novo hospital, realizou o procedimento de alívio e até hemodiálise. Porém, sujeitá-lo a isso era prolongar o sofrimento sem prolongar vida digna. Certo dia, a médica chefe chamou a família para uma conversa honesta. Minha sogra, realista, disse —não sem dor— que não queria mais vê-lo sofrer.
No sábado, quando chegamos ao hospital, seu Zé foi levado para o andar dos cuidados paliativos. Nenhum aparelho preso às suas veias. A boca e olhos semiabertos indicando o fim. Morreu no dia 1º de março, ao lado do filho. Em meio a uma emenda de feriado, havia mais de 100 pessoas no velório.
Um dos últimos desejos de seu Zé era deitar no sofá com os gatos. Me sinto frustrada. Atravessei muitas pontes, escrevo sobre fim digno no maior jornal do país. Mas ainda não consigo salvar os meus, diante das tantas deficiências de direitos que atravessam as periferias. A dor de saber na teoria o que precisamos, mas não encontrar na prática, machuca muito. Estamos falando de cuidados paliativos, mas tanto meu pai quanto seu Zé mal tiveram direito a um leito.
Este é um texto para o Diego, Fátima e para todos que perderam o amor de sua vida quando a palavra câncer apareceu na boca do médico e neste Natal não estarão juntos.


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