domingo, 28 de dezembro de 2025

O melhor filme de 2025 é 'O Riso e a Faca', Ronaldo Lemos FSP

 Ainda não fui ver "O Agente Secreto". Tirante a possibilidade de que seja uma obra-prima absoluta, o melhor filme de 2025 na minha opinião é, de longe, o extraordinário "O Riso e a Faca". Trata-se de uma co-produção brasileira com mais três países, dirigida pelo português Pedro Pinho e com fotografia acachapante do brasileiro Ivo Lopes Araújo.

O filme sacudiu o Festival de Cannes deste ano, onde foi exibido na mostra Un Certain Regard, levando o prêmio de melhor atriz para a cabo-verdiana Cleo Diára. Deveria ter levado mais. Em tempos em que muita gente acha que o cinema é uma arte em declínio, "O Riso e a Faca" comete uma cosmogonia: cria um universo inteiro em suas mais de três horas de duração.

Uma mulher de cabelo loiro curto e óculos escuros está inclinada para frente ao lado de um homem de barba e cabelo escuro, que veste uma camisa amarela. Ambos estão no banco traseiro de um veículo, com sacolas visíveis ao lado direito.
Cena do filme "O Riso e a Faca" - Divulgação

Esse universo atende pelo nome de Guiné-Bissau. A partir do país africano o filme conduz uma observação sofisticada, fascinante e aberta do estado atual do mundo. Por exemplo, o protagonista da trama é um engenheiro ambiental português chamado Sérgio, funcionário de uma ONG. Ele vai ao país avaliar o impacto da construção de uma estrada.

De cara há um choque entre o seu papel globalizante, de funcionário de ONG que traz valores "universais", com a complexidade das forças presentes em Guiné-Bissau, locais e globais: imigrantes de várias origens com agendas pessoais distintas, o avanço da busca por lucro a partir de agentes locais e estrangeiros, as nuances entre pobreza e modos de vida tradicionais, a presença inafastável da China. E no meio de tudo isso, uma outra força universalizante em ação: o desejo (o filme é para adultos, não veja com crianças por perto!).

Uma das dádivas do filme é retratar as inúmeras formas como o português é falado. O "de Portugal", o "brasileiro", os modos de fala locais, as formas mestiças, incluindo variantes de crioulo, e assim por diante. Só isso já seria motivo para fascínio. Mas o filme vai além. Abre sucessivos buracos-de-Alice.

Mostra como é o cultivo do arroz nas bolanhas (manguezais), e sua luta perpétua para manejar a água do mar. A tórrida vida noturna em Bissau, movida pela música de artistas como Américo Gomes, Don Pina e Kilograma. E regada a cerveja portuguesa Super Bock (marca que aparece também em camisetas de crianças no país). Ou ainda, a nostalgia de se preparar a cachupa na comunidade cabo-verdiana. Ou o desejo de visitar "as ilhas", modo como os locais chamam o arquipélago na costa, como Pecixe e suas praias paradisíacas e praticamente desconhecidas.

"O Riso e a Faca" (o título vem de uma música de Tom Zé) é cinema de estupefação. Mesmo depois das mais de 3 horas e 30 minutos de duração, desejei que o filme continuasse. Queria saber mais sobre como a água chega nas tabancas (aldeias) isoladas do país. Ou o que aconteceu com a comunidade que se espantou ao saber que em Portugal as pessoas "jogam água limpa nas latrinas".

São perguntas que me levam a querer visitar Guiné-Bissau, convertida em um misto de bola-de-cristal com espelho de autoconhecimento por esse filme único e grandioso. Por fim, vale dizer que há outro filme feito em África chamando atenção neste ano cinematográfico tão rico: "Sirāt". Não é ruim. Mas perto de "O Riso e a Faca" é diminuto. Feliz ano novo!!

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