Chamamos de inteligência a propriedade das coisas que se parecem conosco. Durante séculos, esse critério funcionou bem. Reconhecíamos inteligência onde havia linguagem, intenção explícita e, conforme as neurociências avançavam, um sistema nervoso centralizado. Porém, esse começo de século se encarregou de escancarar o quanto estávamos errados.
Planárias aprendem por associação a se distanciar de locais não seguros e depois são decapitadas. Após alguns dias, um novo cérebro se forma e a resposta aprendida reaparece. Lagartas fazem o mesmo, evitando odores associados a ameaças. Em seguida entram em metamorfose. Seu sistema nervoso é dissolvido e um outro ressurge para a vida aérea. Como uma alegoria do karma, a borboleta passa a evitar os riscos que um dia a lagarta conheceu.
Animais treinados têm RNA extraído de seus tecidos. Esse material é injetado em espécimes não treinados. O resultado muda de forma compatível com a experiência original.
Existe um mito persistente de que neurônios seriam a condição sine qua non do comportamento inteligente. O que Michel Levin mostrou é que outras redes celulares também filtram ruído e orientam condutas, apenas de maneira mais lenta e menos especializada. O princípio é o mesmo, o substrato é que varia.
Em organismos regenerativos, a remoção de suas partes leva sempre ao mesmo resultado, o que é uma tremenda adaptação. Mas basta alterar o estado fisiológico da criatura antes do corte para que o resultado mude. Dali em diante, o animal insistirá nesse novo padrão, revelando que a forma em si passou a funcionar como memória na reconstrução.
Até fora dos limites da vida há rudimentos desse princípio. Em reações químicas oscilantes, como a de Belousov-Zhabotinsky, o sistema exibe memória: seu estado futuro depende de sua história. Funcionalmente, isso é processamento de informação, aqui ocorrendo sem um alguém.
A razão para essas coisas é clara. A inteligência está mais para uma coleção de gambiarras extraídas das propriedades do mundo do que para uma condição existencial de seres assim ou assado. A reação química tem um quê de aprendizado porque os recursos moleculares de que este emerge precedem a própria vida.
O perigo de ignorar essas sutilezas é ser sugado por um dogmatismo pré-copernicano, no qual a centralidade humana não é argumento, mas pressuposto. É o que ocorre no debate sobre inteligência artificial, quando se repete, como fazem Noam Chomsky e tantos outros, que a máquina "não pensa" (o que é verdade) e disso se deduz que não pode ser inteligente.
O erro aqui é confundir posição funcional com privilégio ontológico, assumindo que as coisas precisam seguir o roteiro que conhecemos —no caso, com neurônios biológicos produzindo imagens mentais e consciência— para caberem nas categorias com que tentamos ordenar o mundo. Só que a inteligência nunca prometeu seguir esse roteiro.
IAs aprendem, generalizam e corrigem erros. Acima de tudo, usam o passado para se orientar ao futuro, ainda que não tenham a menor ideia do que isso significa. O mal-estar que causam é o mesmo que assolava o intelectual europeu do século 16. Acontece que, tal como o universo nunca foi guiado pela Terra, a inteligência está longe de ser um constructo estável e menos ainda uma propriedade só humana.

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