quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Paulo José dos Reis Pereira - A cannabis e o capital: entre a guerra e o mercado, FSP

  

Paulo José dos Reis Pereira

Professor associado da área de relações internacionais da PUC-SP e coordenador do Núcleo de Estudos sobre Drogas e Relações internacionais (Nedri)

O tratamento dado à Cannabis atualmente expõe um dos principais dilemas do nosso mundo, relacionado à violência e ao capitalismo: a mesma planta que serve de pretexto para matar e prender nas periferias do planeta tem sido transformada em Ativo Financeiro Nos Centros Do Poder.

megaoperação policial realizada em comunidades do Rio de Janeiro em 28 de outubro deixou um rastro de morte e mostrou, mais uma vez, a face violenta da guerra às drogas à brasileira. Sob o pretexto de combater o narcotráfico, o Estado segue matando em territórios pobres e negros, transformando o controle da Cannabis e de outras drogas em instrumento de punição, moeda política para obtenção de votos e imposição do medo.

Pessoas esperam em fila para comprar Cannabis em Manhattan, Nova York - Eduardo Munoz - 29.dez.22/Reuters


Do outro lado do continente, Donald Trump invoca o combate ao "narcoterrorismo" (do qual a Cannabis é identificada como uma das principais mercadorias) para justificar operações militares no Caribe, explodir embarcações desconhecidas e deslegitimar adversários políticos, por ora os governos da Venezuela e da Colômbia. Uma história antiga que tem sido reeditada desde os anos 1970.

Mas, enquanto esse espetáculo grotesco de violência se repete "ad nauseam" em nome da proibição da Cannabis e de outras drogas, a mesma planta psicoativa sustenta um dos mercados mais promissores do capitalismo contemporâneo. Nos Estados Unidos e no Canadá, grandes corporações como Curaleaf, Green Thumb Industries, Tilray, Cronos Group e Canopy Growth, entre tantas outras, disputam patentes, fusões e marcas de Cannabis "premium" e constroem lojas que mais se parecem com as da Apple. No Brasil, por sua vez, cresce o lobby por modelos de regulação da Cannabis para fins medicinais e industriais voltados ao lucro e distantes de uma orientação de acesso amplo à saúde e justiça social.


Segundo estimativas da Prohibition Partners, uma das principais consultorias internacionais de mercado sobre a indústria global da Cannabis, as vendas legais de produtos da erva para fins medicinais e recreativos somaram cerca de US$ 45 bilhões em 2022 e podem ultrapassar US$ 100 bilhões até 2026.

Mantido esse ritmo de expansão, o mercado poderá alcançar cifras próximas a US$ 400 bilhões até 2030, consolidando-se como um setor extremamente lucrativo e o mais emblemático na transformação da repressão em negócio.

No livro que lancei recentemente, "Cannabis Global Co.: Consenso Fissurado" (Educ/Fapesp, 2025), analiso esse reposicionamento da planta no circuito capitalista neoliberal, um movimento que denomino "capitalismo canábico". O conceito descreve o avanço da captura corporativa e financeira da regulação, processo que reconfigura o papel da Cannabis sem romper com a lógica histórica de exclusão. Na prática, a planta está sendo instrumentalizada pelo capital, descriminalizada apenas nos aspectos que permitem seu aproveitamento como fonte de lucro para as mesmas populações e corporações que se beneficiam historicamente da exploração de outras commodities, farmacológicas, agrícolas ou recreativas.


Enquanto no Brasil ainda se mata pela maconha, como demonstram as recentes operações no Rio de Janeiro, em Manhattan se lucra com ela, nas bolsas de valores e nos fundos de investimento. O mapa global da Cannabis expõe um mundo em que o lucro é expressão da liberdade e a criminalização, destino imposto pela desigualdade e pelo racismo.

O que fazer diante desse cenário desolador?


O desafio central é acordarmos que o debate sobre a regulação responsável das drogas é uma necessidade imediata, no seu sentido ético e prático. Ela tem o potencial de conter a contínua expansão do mercado ilegal, reduzir a violência e substituir a lógica de guerra por políticas voltadas à saúde pública e à justiça social. No entanto, esse processo não pode ser guiado pela lógica do mercado, que tende a transformar tudo em oportunidade de lucro.

A regulação deve responder ao interesse público, não às pressões corporativas. Com essa orientação, poderemos transformar a política de drogas em motor de desenvolvimento. Tal iniciativa corajosa não resolverá todos os problemas de segurança pública do país, mas sem ela tampouco qualquer solução será possível.

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