Leio no site da revista The New Yorker que já não é possível explicar o bolsonarismo (ou qualquer outra aberração lógica) pela teoria da dissonância cognitiva, conceito-chave da psicologia social dos anos 1950 e que desde então tem servido para explicar quase tudo o que parece incompreensível no comportamento humano.
O conceito foi afinado com base na pesquisa sobre uma seita de lunáticos que acreditavam em discos voadores. A recente divulgação do arquivo pessoal de um dos três autores do estudo de 1956, Leon Festinger, revelou entretanto que suas conclusões estavam contaminadas por uma série de falhas e inconsistências do trabalho de campo.
Pena. Como explicar que ainda haja quem acredite que Trump nada tem a ver com as maquinações sexuais de Jeffrey Epstein ou que Bolsonaro e seus comparsas são vítimas inocentes da justiça? Ou que Silas Malafaia e Sóstenes Cavalcante representam os interesses de Deus na Terra? Ou que os Bolsonaro vieram para salvar o Brasil da corrupção e da bandidagem?
A seita em questão havia recebido mensagens de alienígenas sobre a iminência de uma enchente que submergiria a América do Norte nas águas do Apocalipse. Houve quem largasse o emprego e limpasse a conta no banco para segui-los. Quando a profecia falhou, passaram à evangelização.
Uma das principais e mais surpreendentes hipóteses da teoria da dissonância cognitiva diz que, contrariados pelos fatos, os indivíduos dobram a aposta na crença, num esforço de redução de danos psicológicos, compensando pelo trabalho de evangelização e pela difusão do autoengano a frustração provocada pela realidade. Como se bastasse convencer e arrebanhar o maior número de seguidores para dobrar o real à sua loucura.
A dissonância cognitiva explica a burrice como um mecanismo compensatório. Os que mais perdem com o engodo são também os que têm mais dificuldade de reconhecer a própria cegueira. Quanto mais descarado o logro, quanto maior o engano, mais insuportável para a vítima o encontro com a luz e a visão. Parece um tanto tautológico, mas tudo bem.
Agora, como fica o pessoal da dosimetria e do esforço pela redução das penas do 8 de Janeiro, ao basear a argumentação de sua defesa na dissonância cognitiva dos condenados que avançaram com sanha destruidora contra as instituições democráticas, mas estariam inconscientes de que participavam de uma tentativa de golpe de Estado maquinada por seu líder?
Se, cientificamente falando, já não é possível atribuir à dissonância cognitiva o ímpeto suicida dos congressistas que advogam pela inocência de quem os atacou em sua própria casa e em sua própria razão de ser, só nos resta reconhecer-lhes a má-fé e a cumplicidade com a bandidagem contra a qual os Bolsonaro sempre brandiram seu patriotismo, enquanto conspiravam para pilhar o país.
O problema da explicação da dissonância cognitiva é, como se percebe, a circularidade. E uma certa tendência a servir de pau para toda obra. Bastaria aos criadores do conceito uma breve visita ao Congresso Nacional para, confrontados com a realidade, serem obrigados a dar o braço a torcer ao problema pouco circular do oportunismo político e da ganância.
Dizem que os Bolsonaro são burros. Como explicar, então, que ainda haja quem dobre a aposta neles, e que de burro não tem aparentemente nada, senão por um cálculo que o desautoriza moralmente como político e ser humano, mas que também lhe garante que não haverá consequências, graças à dissonância cognitiva dos eleitores?
Se, como defende a teoria, quem mais perde com o logro é também quem tem mais dificuldade de enxergar, que é que falta aos espertos? É fácil aplicar a teoria da dissonância cognitiva aos outros quando somos nós que acreditamos ver. Em que pese a tautologia do conceito, parece que ele ainda é capaz de explicar o comportamento suicida dos que creem que nunca perdem.

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