Philip Roth surpreendeu muita gente ao publicar, em 2004, "Complô contra a América". Diferentemente da maioria dos seus romances, este deixa o realismo de lado para se aventurar num gênero que muitos chamam de "história alternativa".
E se Charles Lindbergh tivesse disputado e vencido Franklin D. Roosevelt na eleição presidencial de 1940? Não é um ponto de partida aleatório. O aviador, de fato, se aventurou pela política e naquele ano, especificamente, era um dos principais defensores da ideia de que os Estados Unidos não deveriam entrar na Segunda Guerra. Lindbergh e os que defendiam essa tese, conhecidos como "isolacionistas", se agrupavam em torno de um comitê chamado "America First".
O escritor imagina o impacto dessa situação sobre a sua família, judeus de classe média baixa que moram no bairro de Weequahic, em Nova Jersey: o pai, um corretor de seguros, a mãe dona de casa e dois filhos. Philip, o mais jovem, narra o romance.
A vitória de Lindbergh na eleição transforma a vida da família. O primeiro ato do presidente é um acordo com a Alemanha nazista. Meninos judeus são enviados para um programa de intercâmbio com o objetivo de americanizá-los.
O romance provocou um misto de admiração e choque. Mas o seu contato com a realidade só foi percebido mais de uma década depois do lançamento, em 2016, na eleição de Donald Trump, cujo slogan era justamente "America First".
Questionado a respeito, em 2017, pela revista The New Yorker, Roth respondeu: "É mais fácil compreender a eleição de um presidente imaginário como Charles Lindbergh do que um presidente real como Donald Trump. Lindbergh, apesar de suas simpatias nazistas e tendências racistas, foi um grande herói da aviação. Tinha caráter e substância e, junto com Henry Ford, era o mais famoso americano de sua época. Trump é apenas um picareta ('a con artist')".
Ao adaptar o romance para a televisão, na minissérie "Complô Contra a América", David Simon (criador da memorável série "The Wire") tinha tudo isso em mente. Como contou à jornalista Liv Brandão, no UOL, quando leu o livro pela primeira vez, em 2004, viu apenas uma alegoria sobre o totalitarismo. Ao relê-lo uma década depois, enxergou os paralelos com a realidade.
Os primeiros dois episódios, de um total de seis, já foram ao ar (na HBO, às segundas-feiras, às 22h, e disponíveis online para assinantes). Muito boa, a adaptação consegue, assim como o romance, dar uma dimensão universal àquele microcosmo familiar.
Simon e Ed Burns, os criadores, parecem não ter pressa em situar o espectador no ambiente histórico e descrever a rotina dos seus personagens. Além do núcleo familiar, dois tipos se destacam, o rabino Lionel Bengelsdorf (John Turturro), que se encanta com Lindbergh, e Evelyn Finkel (Winona Ryder), uma tia ingênua do menino Philip (Azhy Robertson), que se aproxima do religioso.
Houve quem reclamasse do ritmo lento deste início da minissérie. Não vejo assim. Ao contrário, cozinhando em fogo baixo o drama, Simon e Burns estão apenas sendo respeitosos com o livro e preparando o espectador para o que vem por aí. Há muito de Philip Roth na minissérie. O que já vale muito.
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Não queria deixar sem registro que nesta semana o jornalismo de TV mostrou, mais uma vez, a importância que pode ter, quando quer, no combate à desinformação. Merece elogios a longa (80 minutos) edição de quarta-feira do Jornal Nacional, da Globo, demonstrando, com fatos, os erros em quase todas as frases do pronunciamento feito pelo presidente Jair Bolsonaro um dia antes.
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