domingo, 21 de dezembro de 2025

105 colunas - Alberto Dines denunciou o esgotamento do jornalismo brasileiro, FSP

 Alberto Dines estava cansado das solicitações de estudantes de jornalismo e decidiu responder a todos de uma vez. Em novembro de 1998, o crítico de mídia publicou na Folha um diagnóstico devastador: "O modelo de jornalismo praticado no Brasil está esgotado".

O texto surgiu da perplexidade que Dines observava nos futuros jornalistas. Eles chegavam "abismados, perturbados" com o que viam na mídia, o idealismo sendo "triturado pela realidade". Para poupar-se de novas entrevistas acadêmicas, decidiu antecipar por escrito o que certamente perguntariam.

Homem idoso com óculos grandes e cabelo branco, vestindo suéter vinho e camisa xadrez, sentado próximo a uma máquina de escrever antiga verde. Ele apoia o queixo com a mão direita e olha para cima, em ambiente interno com iluminação suave.
O jornalista Alberto Dines - Rogério Albuquerque - 26.jun.1997/Folhapress

A crítica era impiedosa. O jornalismo brasileiro havia se tornado "um gigantesco faz-de-conta", onde profissionais imaginavam-se livres e empresas fingiam imparcialidade. "A isenção é uma farsa, mera distribuição de barbaridades em todas as direções", escreveu, sempre pontuando com a ressalva irônica: "Com as honrosas e raras exceções".

Dines identificou a "tabloidização" da grande imprensa mundial após a morte da princesa Diana — o próprio apelido Lady Di era uma contração para caber em títulos garrafais. No Brasil, as redações haviam se tornado bunkers onde se escrevia para outros jornalistas. "O leitor que se dane."

Leia a seguir o texto completo, parte da seção 105 Colunas de Grande Repercussão, que relembra crônicas que fizeram história na Folha. A iniciativa integra as comemorações dos 105 anos do jornal, em fevereiro de 2026.

Por um jornalismo humanista (21/11/1998)

Crianças adoidadas -festas e férias-, universitários excitados -notas, diploma, carreira. Prazo fatal para as pesquisas de fim de semestre, trabalhos em grupo (em geral, tocados apenas por um), monografias finais. Zuenir Ventura, há dois anos, no "Jornal do Brasil", numa gostosa crônica, chamou a atenção para a avalanche das solicitações de entrevista que recebia de estudantes de jornalismo, alguns nem sabiam grafar seu nome, ansiosos para preencher os requisitos formais.

Sofro esse assédio, a tática de defesa consiste em exigir um mínimo de esforço -que anotem as respostas, porque a maioria prefere que o entrevistado faça o trabalho do entrevistador. Se, por acaso, animam-se a um encontro pessoal, dou um jeito de tirar das mãos do futuro repórter as perguntas que trouxe por escrito. Modesta contribuição para desenvolver a capacidade de perguntar. Ou a vontade de saber.

Por razões alheias à minha vontade, os pedidos aumentaram de repente. Noto, porém, uma atitude diferente nos futuros colegas. Abismados, perplexos, perturbados. Fico condoído em ver o idealismo (ou a ambição, talvez a combinação dos dois) triturado pela realidade do que lêem, ouvem ou assistem na mídia. Assim como a parte mais sensível do público, estes que vão lidar com o público começam a divisar algo que não está nos textos.

Para abortar novas solicitações, demandas acadêmicas e questionamentos existenciais dos jornalistas em gestação antecipo por escrito o que certamente vão perguntar.

O modelo de jornalismo praticado no Brasil está esgotado. Autoinfectou-se, carece de antídotos autógenos. É um gigantesco faz-de-conta, armação joco-séria (como as tragicomédias de Antônio José da Silva no século 18). Profissionais imaginam-se livres, empresas jornalísticas fingem imparcialidade. Arrogância, onipotência e, às vezes, perversidade escondem-se atrás de um pretenso senso de justiça que não resiste a qualquer avaliação mais profunda. Com as honrosas e raras exceções.

A isenção é uma farsa, mera distribuição de barbaridades em todas as direções. O linchamento dá-se com uma foto inocente e uma legenda pretensamente objetiva. A goela escancarada de um âncora ou o falsete de outro são as provas irrefutáveis de uma infração sequer investigada. "Comunicadores" nas rádios pinçam duas linhas nos jornais da manhã e, com elas, montam catilinárias para alimentar o dia inteiro.

As redações são "bunkers", escreve-se para aqueles que escrevem. O leitor que se dane. O sistema mediático, viga mestra do processo democrático, converteu-se num pêndulo de clonagem e canibalismo, no qual todos se copiam e todos se digladiam. A concorrência não busca a pluralidade, a diversidade ou a qualidade, mas a anulação desta pela reiteração. Com as honrosas e raras exceções.

Logo depois da morte da princesa Diana Spencer mencionei a tabloidização da grande imprensa mundial. A prova estava no próprio apelido, Lady Di, contração do nome da infeliz para caber num título garrafal do jornal de pequeno formato. A grande imprensa hoje está visivelmente impregnada pelo baixo jornalismo. Com as honrosas e raras exceções.

O divulgador da primeira fofoca na Internet sobre o caso Monica Lewinsky foi claro: "sou repórter, não sou jornalista". Estabeleceu-se, nesta virada do século, uma linha divisória que vai marcar todos os debates sobre o futuro de um serviço público que já foi chamado de Quarto Poder. Colocou-se a preciosa arte da reportagem -busca permanente da verdade- nos porões de um negócio que confunde credibilidade com credulidade. Com as honrosas e raras exceções.

Quando em 1994 as parabólicas captaram uma conversa informal entre um repórter e o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, soltaram-se os mastins da mídia para estraçalhar a honorabilidade de um homem público que confessou aquilo que os jornais praticam ostensivamente: quando cai a circulação, inventam-se promoções ("o ruim a gente esconde..."). Ricupero foi salvo do justiçamento sumário da mídia por seu confessor, que pediu um crédito de confiança no ser humano.

Quatro anos depois, almas ensandecidas, estamos diante de um paraíso niilista: ninguém presta -de Lula a FHC. Paulo Mercadante traiu o PT porque deu as fitas ao adversário político. André Lara Resende prevaricou em favor de amigos que, afinal, não ganharam. Seu avô materno, Israel Pinheiro, vilipendiado ao longo de uma viciosa campanha de difamação orquestrada por Carlos Lacerda, era um homem de bem. Esse o seu mal.

A descrença fulcral na humanidade está na raiz de todos os espasmos despóticos e "saneadores". O fascismo não é um partido político, é uma psicopatologia, deformidade moral. Se ninguém presta, os "eleitos" podem tudo. A Inquisição foi estabelecida porque a igreja não acreditava na capacidade do ser humano de eleger: converteu escolha em heresia. O protofascismo austríaco do fim do século passado duvidava das instituições e dos valores que haviam contribuído para os avanços da sociedade: cultura, liberdade, leis, partidos.

As grandes falsificações da história foram maquinações dos fascistas, porque nessa paranóia justiceira não há lugar para escrúpulos ou limites, o que se pretende é obliterar o senso de justiça: o "Affaire Dreyfus" (1894) foi montado em cima de um "telegrama azul" produzido por um agente duplo a serviço da direita militar francesa. Os "Protocolos dos Sábios de Sion" com os planos de uma pretensa dominação mundial judaica apareceram na Rússia czarista (cerca de 1902), bode expiatório para abafar a rebelião. O incêndio do Reichstag (fevereiro de 1933) foi uma provocação anticomunista dos recém-empossados nazistas. O Plano Cohen, armado pelos militares integralistas brasileiros, tentou impedir as eleições e foi pretexto para o Estado Novo (1937). A "Carta Brandi" (1955) foi um falso escândalo articulado pelo mesmo Lacerda para melar as eleições de 1955 e prejudicar a chapa JK-Jango. Em todos esses episódios a imprensa foi protagonista. Salvo as honrosas e raras exceções.

O salutar ceticismo filosófico converteu-se em perigosa certeza jornalística: todas as suspeitas são fundadas, todos os suspeitos, culpados. Impera a ambiguidade. Ninguém presta, todos na vala comum, humanidade sem crédito. Simulacro de justiça -sem ritos, prazos, normas.

Visão de mundo a partir do lodaçal, ótica da sarjeta. A última profissão romântica confunde-se com a mais antiga profissão do mundo. Instituição financeiramente quebrada, tenta uma nesga de poder. Paga muito a poucos, ungidos para celebrar suas preferências e produzir lixo. Com as honrosas e raras exceções.

Descobrir as tais exceções, jovens amigos, acreditar nas distinções, combater as generalizações e o nivelamento por baixo é o desafio de um jornalismo humanista.

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