quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

A ARTE DE DIZER OLÁ , Alexandre Marcos Pereira - in APMP

 É aparentemente ingênua a hipótese de que cumprimentar as pessoas  aumenta a longevidade — como se a receita para viver mais tempo coubesse em meia dúzia de sílabas pronunciadas de passagem. Mas, à medida que a ciência avança sobre os efeitos da solidão, da vida urbana e da fragmentação dos laços sociais, essa suspeita vai deixando de parecer fofura de autoajuda e começa a ganhar contornos de tese respeitável: talvez os pequenos rituais de saudação sejam uma espécie de “vitamina social” diária, tão discreta quanto decisiva. Cumprimentar alguém é um gesto tão banal que geralmente passa despercebido. Uma palavra curta, um aceno com a cabeça, um sorriso fugaz no corredor. Mas, sociologicamente, o cumprimento é um ritual de confirmação: ao dizer “olá” a alguém, você está, essencialmente, reconhecendo que o outro existe e importa minimamente. Erving Goffman, o grande analista da vida cotidiana, diria que o cumprimento funciona como um pequeno contrato: • eu reconheço que você está aqui; • você reconhece que eu estou aqui; • e, por alguns segundos, suspende-se o anonimato indiferente do mundo. É pouca coisa? Para o cérebro, não. O cérebro é um órgão obcecado por sinais de pertença. Ele mede o tempo todo, com delicadeza paranoica, se estamos incluídos ou excluídos, se somos bem-vindos ou rejeitados. Um simples “bom dia” no elevador comunica, em linguagem microscópica, que você não é um fantasma social. Nas últimas décadas, pesquisas em saúde pública vêm repetindo, com métodos cada vez mais sofisticados, uma constatação desconfortável: solidão mata. Não em sentido metafórico apenas – mas literalmente. A ausência de vínculos consistentes se associa a maior risco de doenças cardiovasculares, depressão, demência, imunidade comprometida e, em última instância, mortalidade precoce. Se o cigarro foi o grande vilão do século XX, a solidão aparece como forte candidata a vilã silenciosa do século XXI. Não se trata apenas de viver “sozinho” no sentido físico, mas de viver não visto. De atravessar dias, semanas, meses sendo, no máximo, um CPF na fila, um número de protocolo, um usuário em mais uma base de dados. Nesse cenário, as saudações – esses olás, hellos, bonjours, holas, ni haos – podem parecer quase ridículas. Mas são, na verdade, fissuras na muralha da invisibilidade. Elas não resolvem tudo, evidentemente; não substituem amizade, intimidade, cuidado, amor. Mas são porta de entrada para tudo isso. Nenhuma grande história de afeto começa com um silêncio constrangido no corredor: quase sempre, começa com um “oi”. Do ponto de vista biológico, o corpo responde ao mundo social em tempo real. Interagir minimamente com outros seres humanos pode: • reduzir níveis de cortisol (o hormônio do estresse); • ativar circuitos de recompensa associados à dopamina; • modular o sistema nervoso parassimpático, ajudando o organismo a sair do estado de alerta permanente. Não está em jogo apenas a conversa longa no bar ou o jantar de três horas; microinterações contam. Trocar duas frases na fila do café, comentar o tempo com o vizinho, agradecer e olhar nos olhos do motorista do ônibus — todas essas pequenas cenas enviam ao cérebro a mensagem: “você não está sozinho no deserto”. É claro que nenhum cientista sério vai dizer que basta repetir “hello” cinco vezes ao dia para ganhar dez anos de vida. Mas o que a pesquisa sugere, cada vez com mais clareza, é que pessoas com redes sociais mais ativas — mesmo que formadas por laços fracos, como conhecidos e vizinhos — têm, em média, melhores desfechos de saúde do que aquelas isoladas. E o cumprimento é o átomo mínimo dessa rede: a unidade básica do vínculo. A sociologia gosta de distinguir entre laços fortes (família, amigos íntimos, parceiros amorosos) e laços fracos (colegas de trabalho, vizinhos, conhecidos do café, a balconista da padaria). À primeira vista, os laços fortes parecem ser os únicos realmente importantes. Mas, na prática, são os laços fracos que costuram o tecido do cotidiano. Eles fazem a diferença entre: • viver na mesma cidade que milhares de estranhos indiferentes; • ou viver em uma comunidade com rostos familiares, mesmo que você não saiba o nome de todos. O “olá” que se troca com o porteiro, o “hola” com o atendente do mercadinho, o “bonjour” com a colega de corredor que você só vê no café… tudo isso constitui uma rede de reconhecimento difuso que amortece a solidão. Do ponto de vista da longevidade, isso é crucial. Porque a vida não se sustenta apenas em grandes acontecimentos; ela se apoia na regularidade dos pequenos rituais. E, entre esses rituais, o cumprimento é um dos mais antigos e universais. Talvez, sem perceber, os cientistas estejam apenas reencontrando, com linguagem estatística e gráficos, uma sabedoria intuitiva das culturas tradicionais: quem é visto, cumprimentado, inserido num círculo de rostos conhecidos, tende a viver melhor — e, muitas vezes, mais. É curioso notar como, apesar das diferenças culturais, praticamente todas as línguas desenvolveram formas de saudação resistentes ao tempo: • Olá (de “olá”, chamando a atenção, quase um “ei, você aí” domesticado); • Hello (com sua história ligada a formas antigas de chamar o outro à escuta); • Bonjour (“bom dia” – um desejo explícito de que o outro tenha um dia bom); • Hola (curta, direta, quase uma interjeição de presença); • Ni hao (“você bem?”), que, mais que cumprimentar, pergunta pelo bemestar. Todas essas fórmulas, apesar da enorme diversidade cultural, orbitam a mesma ideia central: eu reconheço você e te dirijo a palavra. Do ponto de vista da longevidade, pouco importa a língua específica. O que interessa é o mecanismo comum: o cérebro humano, em Pequim ou em Ribeirão Preto, reage com alívio quando percebe sinais de inclusão mínima. O “ni hao” carregado de séculos de tradição confuciana e o “olá” apressado num hall de prédio moderno cumprem funções semelhantes: afastar os fantasmas da exclusão. A vida nas grandes cidades, porém, veio embaralhar esse repertório ancestral. Por um lado, estamos cercados de gente como nunca antes na história. Por outro, raramente nos sentimos tão sozinhos. Há uma espécie de epidemia de anonimato: você pode dividir o vagão do metrô com cem pessoas e, ainda assim, atravessar todo o trajeto sem uma única troca de olhares ou palavras. As telas reforçam essa ambivalência. Passamos horas trocando mensagens, reagindo com emojis, curtindo fotos, e isso cria uma sensação de conexão constante. Mas uma coisa é o “oi” digitado mecanicamente numa janela de chat; outra, muito distinta, é o “olá” pronunciado com voz, entonação, expressão facial, a presença física inteira engajada no ato. Para o cérebro e para o corpo, esse detalhe importa. O contato presencial mobiliza todo um conjunto de sinais não verbais — sorriso, postura, tom — que os pixels simplesmente não conseguem reproduzir integralmente. Não se trata de demonizar o digital, mas de reconhecer que o capital social presencial ainda tem um peso imenso na saúde e na longevidade. Talvez o risco do século XXI não seja apenas viver cercado de estranhos, mas acostumar-se tanto às interações mediadas que se perca o hábito de dizer “olá” para quem está, literalmente, ao nosso lado. Pensar o cumprimento como questão de longevidade é, no fundo, pensar o cotidiano como uma espécie de política de baixo para cima. Há grandes políticas públicas de saúde – vacinação, saneamento, hospitais – sem as quais não há sociedade minimamente decente. Mas existe também uma micro-política do cuidado que se desenrola no plano dos gestos mínimos. Dizer “bom dia” não substitui um sistema de saúde competente, mas colabora para um ambiente social menos hostil. E ambientes menos hostis reduzem o nível basal de estresse, o que, em larga escala, significa menos pressão arterial explodindo, menos infartos, menos AVCs, menos depressão. Venho de dois ACVc seguidos. Minha competente neurologista, Dra. Soraia, diretora do Instituto do AVC de Ribeirão Preto, vaticinou que pelo estilo de vida sedentário, alimentação, fatores clínicos e hereditários tenho uma probabilidade de 50% de ter um terceiro AVC, que teria sequelas mais graves e até letais do que os dois anteriores. Premido pelas circunstâncias, tenho mudado alguns hábitos. Cumprimentar as pessoas é a parte fácil de ser um new Alexandre. É claro que isso não se mede facilmente em gráficos: não há banco de dados com o número de “olás” que um bairro troca por dia. Mas é difícil duvidar de que um condomínio em que os vizinhos se cumprimentam, ainda que sem grandes intimidades, seja psicologicamente mais saudável do que um edifício silencioso, onde todos se evitam como se promovessem uma quarentena emocional permanente. Nesse sentido, dizer “hello” é um ato político, ainda que minúsculo: uma recusa a transformar todos em estranhos totais. É verdade que, em muitos contextos, o cumprimento virou apenas formalidade. O “tudo bem?” que não espera resposta, o “bom dia” automático na reunião de trabalho, as fórmulas repetidas em tom burocrático. Há quem veja nisso mera hipocrisia social e conclua que seria melhor abolir a fachada educada e assumir a indiferença. Mas essa leitura é, talvez, injusta. Mesmo quando roteirizado, o ritual carrega um potencial de humanidade. Não é preciso que cada “olá” venha acompanhado de uma explosão de sinceridade. Basta que não seja um gesto de desprezo. A etiqueta pode funcionar como a casca que protege o núcleo de algo mais profundo: a disposição de não tratar o outro como inexistente. O desafio, então, é habitar esses rituais com um mínimo de presença. Dizer “bonjour” ao colega francês ou “hola” ao amigo hispanofalante não como quem aciona um botão de software, mas como quem realmente abre um microespaço de encontro — por breve que seja. Quando se diz que “os cientistas desconfiam” que falar olá, hello, bonjour, hola e ni hao pode ajudar na longevidade, cabe ler essa frase em duas camadas: 1. Camada empírica: pesquisas mostram, com crescente robustez, que pessoas socialmente conectadas vivem, em média, mais e melhor. Cumprimentos são um dos tijolos dessa arquitetura. 2. Camada simbólica: viver mais não é apenas acumular anos no calendário; é prolongar o tempo em que faz sentido levantar da cama, atravessar a rua, olhar nos olhos de alguém e, por um instante, fazer parte de uma trama de histórias. Se a ciência está certa em desconfiar, então o convite é simples e, ao mesmo tempo, exigente: não economizar cumprimentos. Não é sair distribuindo intimidade forçada, mas aproveitar as oportunidades óbvias — o porteiro, o colega de corredor, a balconista, o vizinho do ônibus, a senhora que espera ao seu lado na f ila. Cada “olá” é, ao mesmo tempo, uma afirmação de que o outro existe e uma lembrança sutil de que você também existe para alguém, ainda que por poucos segundos. Se isso vale ou não alguns meses a mais de vida, os estudos seguirão debatendo. Mas, mesmo que não rendesse um único dia a mais no calendário, já seria muito: renderia dias menos vazios. Talvez, quando olharmos para trás, daqui a algumas décadas, a hipótese científica se consolide: comunidades onde as pessoas se cumprimentam mais tendem a ser mais longevas, menos doentes, menos desesperadas. Talvez não. A ciência é paciente; ela corrige, refina, às vezes desmente suas próprias apostas. Mas há algo que não depende de estatística: a experiência imediata de ser reconhecido. Aquele instante em que alguém cruza os olhos com os seus e diz, com qualquer sotaque, em qualquer língua: “Eu sei que você está aqui. Eu estou vendo você.” Se isso pode, de fato, prolongar a vida, é plausível que os cientistas queiram medir. Nós, enquanto isso, podemos simplesmente viver essa hipótese — multiplicando olás, hellos, bonjours, holas e ni haos pelo caminho. No pior cenário, teremos apenas deixado o mundo um pouco menos frio. No melhor, teremos descoberto que a chave da longevidade começa, discretamente, em algo tão simples quanto abrir a boca e  e, com um sorriso, dizer: “olá”. 

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