Meu pai tem uma história famosa, dessas que todos nós temos dentro de nós, um "causo" que aconteceu em algum momento da vida e que, por qualquer motivo, em vez de ser renegado ao esquecimento como são tantos, fica impresso para sempre no córtex.
No caso desta história em particular, acredito que sua eternização tenha se dado, a princípio, pelo estranhamento e frustração que gerou, mas, a posteriori, pela moral que meu pai foi capaz de extrair dela. Foi, aliás, esta moral que possibilitou ao causo ganhar status de anedota, dessas que se recita para grupos de amigos ao redor da mesa ou para filhas que demandam aconselhamento, como foi tantas vezes o meu caso.
O causo é mais ou menos assim:
Aos 20 e poucos anos, já com mulher e filhos, insatisfeito com o emprego que tinha à época, meu pai se deparou com o anúncio de uma vaga de trabalho numa famosa multinacional que fabricava lâminas de barbear. Decidiu então ir lá saber mais e vender seu peixe. A tal empresa comprou. Depois de duas ou três entrevistas, lhe ofereceram a vaga que vinha acompanhada de um bom salário e um promissor plano de carreira.
Reza a lenda que, ao selar a contratação com um aperto de mãos, o futuro chefe mirou meu pai nos olhos e disse: "agora só falta raspar essa barba".
O que podia soar como uma piada era, de fato, uma exigência. Aparentemente, a tal multinacional não contratava ninguém que ostentasse pelos faciais.
Meu pai negou a oferta. "Se vocês fabricassem cigarros iam me obrigar a fumar?", questionou ao comunicar sua decisão.
Quando ouvi a anedota pela primeira vez, eu me preparava para prestar vestibular e as dúvidas sobre que curso seguir me consumiam. Sentada ao seu lado, no banco do carona do carro, permaneci olhando para a estrada, enquanto suas palavras alcançavam os meus ouvidos.
Ao final do relato, permaneci calada, um tanto enfurecida pela falta de conexão aparente entre meu dilema e os fatos narrados. Eis que a conexão veio.
"Você nasceu porque eu resolvi não raspar a barba. Se tivesse raspado e aceitado aquele trabalho, eu não teria mudado de cidade, não teria vindo parar em Salvador e não teria conhecido sua mãe", ele disse, com aquele sorriso de satisfação do contador de histórias quando ele sabe que capturou a atenção do ouvinte.
Olhei para ele pela primeira vez desde o início da conversa com as sobrancelhas levantadas. Ele seguiu:
"A vida é feita de decisões, minha filha. A cada momento de cada dia decidimos tomar um caminho em detrimento de outro. Atravessar ou não a rua. Ir ou não a um evento. Avançar ou não um sinal. Raspar ou não a barba. Mas, na maior parte das vezes, nem percebemos que estamos escolhendo algo e que aquela escolha também representa uma renúncia. Portanto, não coloque essa pressão toda nessa decisão que você precisa tomar. A consciência sobre as possíveis consequências de uma escolha não fazem com que ela seja mais importante ou mais correta do que todas as outras decisões que você já tomou hoje sem nem pensar duas vezes."
Ao longo da vida, ouvi esta história muitas outras vezes, mas nem precisava. Vira e mexe repito para mim mesma as palavras ditas naquele carro.
Há poucos meses, tomei a decisão de me mudar de volta para o Brasil depois de dez anos morando fora e, desde então, penso nesta história todos os dias. Decidi raspar a barba, agora é conter a ansiedade e deixar a vida fazer o que ela faz de melhor, surpreender.

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