Aqui, de onde escrevo, é um enorme vulcão, com quase 30 quilômetros de diâmetro, e dentro dele há uma cratera, com dez quilômetros de diâmetro, e dentro dessa cratera um outro vulcão, que se eleva a quase 3.000 metros de altitude. Tudo no meio do Atlântico Norte, no arquipélago de Cabo Verde.
Dentro da cratera, no sopé do vulcão-dentro-do-vulcão, há uma aldeia que se chama Chã das Caldeiras, dividida em dois povoados chamados de Portela e Bangaeira. Ao contrário do que se poderia supor, o vulcão está ativo. Na memória viva dos habitantes da aldeia, já entrou em erupção pelo menos três vezes, com várias erupções menores durando meses, a cada vez com rios de lava (só na última erupção, mais de 100 milhões de toneladas de lava) que destruíram casas, pomares, vinhas, modos de vida.
Numa das vezes, em 1995, o Estado cabo-verdiano chegou mesmo a proibir que se vivesse gente dentro da grande cratera, tendo construído uma aldeia do lado exterior do vulcão principal para que os habitantes da Tchã (como se diz em crioulo de Cabo Verde) pudessem se mudar. Sem efeito. Logo que puderam, as pessoas não ligaram para as proibições do governo nem para os perigos vulcânicos e regressaram. Por quê?
Quando vim aqui pela primeira vez, em agosto de 1994, já não havia erupção desde 1951. O apego das pessoas ao seu habitat era tal que conheci então gente que, nesta ilha de pequena dimensão, nunca tinha visto o mar. O seu mundo era limitado de um lado pela enorme falésia a que chamam bordeira e que rodeia a Chã, uma parede que chega a ter quase um quilômetro a pique, e do outro pelo cone vulcânico secundário de 1.600 metros, tudo a partir de uma altitude-base de 2.000 metros.
Essas condições explicam por que razão, neste país onde chove pouco, a umidade que ali se acumula permite ter frutas e legumes de todo o tipo e ainda produzir um vinho especialíssimo. É isso que faz as pessoas voltarem a cada vez que a lava lhes destrói as casas.
Os ciclos do vulcão do Fogo são imprevisíveis. Num século como o 17 houve mais de dez erupções; no século 20, apenas duas. Elas podem durar dias, semanas, meses ou mais. E ainda assim a vida continua e tem de ser reconstruída a cada vez.
De certa forma, a experiência das gentes do Fogo, e em particular da Chã, são como uma metáfora para uma filosofia da história que me parece adequada aos dias de hoje. Depois de termos achado que "a história acabou", ou seja, que o vulcão que existe sob as nossas democracias e sociedades estáveis havia adormecido, eis que agora a crise é tão permanente que nos começamos a perguntar se a instabilidade e o autoritarismo é que são afinal a regra e que nós vivemos numa fugaz exceção.
Essa ideia deixa muita gente desanimada, desorientada, deprimida, desesperada ou todas as anteriores. Mas ao invés dessa dúvida nos tirar a vontade de lutar, ela deve é nos inspirar a cuidar bem de cada momento que nos é dado.
Nesta quarta-feira (31) regressarei à Chã das Caldeiras, a aldeia que tem de reconstruir a civilização a cada vez que o vulcão desperta. E a cada vez o vinho é melhor, e os sorrisos são mais abertos. É essa a lição que levo do último dia do ano para 2026.

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